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terça-feira, 29 de março de 2011

CLARICE LISPECTOR: FELIZ ANIVERSÁRIO

CLARICE LISPECTOR: FELIZ ANIVERSÁRIO

NEUZA MACHADO

Para uma nova reflexão sobre os laços afetivos que existiam na maioria dos núcleos familiares brasileiros, em meados do século XX, apresento-lhes a narrativa ficcional “Feliz Aniversário” de Clarice Lispector.

Espero que a leitura desta singular narrativa possa promover um novo entendimento sobre o conceito de interação familiar, instaurando laços mais solidários e tolerantes entre as diferentes gerações.


FELIZ ANIVERSÁRIO

Clarice Lispector


A família foi pouco a pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana. A nora de Olaria apareceu de azul-marinho, com enfeite de paetês e um drapeado disfarçando a barriga sem cinta. O marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandara sua mulher para que nem todos os laços fossem cortados — e esta vinha com o seu melhor vestido para mostrar que não precisava de nenhum deles, acompanhada dos três filhos: duas meninas já de peito nascendo, infantilizadas em babados cor-de-rosa e anáguas engomadas, e o menino acovardado pelo terno novo e pela gravata.

Tendo Zilda — a filha com quem a aniversariante morava — disposto cadeiras unidas ao longo das paredes, como numa festa em que se vai dançar, a nora de Olaria, depois de cumprimentar com cara fechada aos de casa, aboletou-se numa das cadeiras e emudeceu, a boca em bico, mantendo sua posição de ultrajada. "Vim para não deixar de vir", dissera ela a Zilda, e em seguida sentara-se ofendida. As duas mocinhas de cor-de-rosa e o menino, amarelos e de cabelo penteado, não sabiam bem que atitude tomar e ficaram de pé ao lado da mãe, impressionados com seu vestido azul-marinho e com os paetês.

Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá. O marido viria depois. E como Zilda — a única mulher entre os seis irmãos homens e a única que, estava decidido já havia anos, tinha espaço e tempo para alojar a aniversariante — e como Zilda estava na cozinha a ultimar com a empregada os croquetes e sanduíches, ficaram: a nora de Olaria empertigada com seus filhos de coração inquieto ao lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras fingindo ocupar-se com o bebê para não encarar a concunhada de Olaria; a babá ociosa e uniformizada, com a boca aberta.

E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que fazia hoje oitenta e nove anos.

Zilda, a dona da casa, arrumara a mesa cedo, enchera-a de guardanapos de papel colorido e copos de papelão alusivos à data, espalhara balões sungados pelo teto em alguns dos quais estava escrito "Happy Birthday!", em outros "Feliz Aniversário!" No centro havia disposto o enorme bolo açucarado. Para adiantar o expediente, enfeitara a mesa logo depois do almoço, encostara as cadeiras à parede, mandara os meninos brincar no vizinho para não desarrumar a mesa.

E, para adiantar o expediente, vestira a aniversariante logo depois do almoço. Pusera-lhe desde então a presilha em torno do pescoço e o broche, borrifara-lhe um pouco de água-de-colônia para disfarçar aquele seu cheiro de guardado — sentara-a à mesa. E desde as duas horas a aniversariante estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa.

De vez em quando consciente dos guardanapos coloridos. Olhando curiosa um ou outro balão estremecer aos carros que passavam. E de vez em quando aquela angústia muda: quando acompanhava, fascinada e impotente, o vôo da mosca em torno do bolo.

Até que às quatro horas entrara a nora de Olaria e depois a de Ipanema.

Quando a nora de Ipanema pensou que não suportaria nem um segundo mais a situação de estar sentada defronte da concunhada de Olaria — que cheia das ofensas passadas não via um motivo para desfitar desafiadora a nora de Ipanema — entraram enfim José e a família. E mal eles se beijavam, a sala começou a ficar cheia de gente que ruidosa se cumprimentava como se todos tivessem esperado embaixo o momento de, em afobação de atraso, subir os três lances de escada, falando, arrastando crianças surpreendidas, enchendo a sala — e inaugurando a festa.

Os músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam mais, de modo que ninguém podia saber se ela estava alegre. Estava era posta á cabeceira. Tratava-se de uma velha grande, magra, imponente e morena. Parecia oca.

— Oitenta e nove anos, sim senhor! disse José, filho mais velho agora que Jonga tinha morrido. — Oitenta e nove anos, sim senhora! disse esfregando as mãos em admiração pública e como sinal imperceptível para todos.

Todos se interromperam atentos e olharam a aniversariante de um modo mais oficial. Alguns abanaram a cabeça em admiração como a um recorde. Cada ano vencido pela aniversariante era uma vaga etapa da família toda. Sim senhor! disseram alguns sorrindo timidamente.

— Oitenta e nove anos!, ecoou Manoel que era sócio de José. É um brotinho!, disse espirituoso e nervoso, e todos riram, menos sua esposa.

A velha não se manifestava.

Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum. Outros trouxeram saboneteira, uma combinação de jérsei, um broche de fantasia, um vasinho de cactos — nada, nada que a dona da casa pudesse aproveitar para si mesma ou para seus filhos, nada que a própria aniversariante pudesse realmente aproveitar constituindo assim uma economia: a dona da casa guardava os presentes, amarga, irônica.

— Oitenta e nove anos! repetiu Manoel aflito, olhando para a esposa.

A velha não se manifestava.

Então, como se todos tivessem tido a prova final de que não adiantava se esforçarem, com um levantar de ombros, de quem estivesse junto de uma surda, continuaram a fazer a festa sozinhos, comendo os primeiros sanduíches de presunto mais como prova de animação que por apetite, brincando de que todos estavam morrendo de fome. O ponche foi servido, Zilda suava, nenhuma cunhada ajudou propriamente, a gordura quente dos croquetes dava um cheiro de piquenique; e de costas para a aniversariante, que não podia comer frituras, eles riam inquietos. E Cordélia? Cordélia, a nora mais moça, sentada, sorrindo.

— Não senhor! respondeu José com falsa severidade, hoje não se fala em negócios!

— Está certo, está certo! recuou Manoel depressa, olhando rapidamente para sua mulher que de longe estendia um ouvido atento.

— Nada de negócios, gritou José, hoje é o dia da mãe!

Na cabeceira da mesa já suja, os copos maculados, só o bolo inteiro — ela era a mãe. A aniversariante piscou os olhos.

E quando a mesa estava imunda, as mães enervadas com o barulho que os filhos faziam, enquanto as avós se recostavam complacentes nas cadeiras, então fecharam a inútil luz do corredor para acender a vela do bolo, uma vela grande com um papelzinho colado onde estava escrito "89". Mas ninguém elogiou a idéia de Zilda, e ela se perguntou angustiada se eles não estariam pensando que fora por economia de velas — ninguém se lembrando de que ninguém havia contribuído com uma caixa de fósforos sequer para a comida da festa que ela, Zilda, servia como uma escrava, os pés exaustos e o coração revoltado. Então acenderam a vela. E então José, o líder, cantou com muita força, entusiasmando com um olhar autoritário os mais hesitantes ou surpreendidos, "vamos! todos de uma vez!" — e todos de repente começaram a cantar alto como soldados. Despertada pelas vozes, Cordélia olhou esbaforida. Como não haviam combinado, uns cantaram em português e outros em inglês. Tentaram então corrigir: e os que haviam cantado em inglês passaram a português, e os que haviam cantado em português passaram a cantar bem baixo em inglês.

Enquanto cantavam, a aniversariante, à luz da vela acesa, meditava como junto de uma lareira.

Escolheram o bisneto menor que, debruçado no colo da mãe encorajadora, apagou a chama com um único sopro cheio de saliva! Por um instante bateram palmas à potência inesperada do menino que, espantado e exultante, olhava para todos encantado. A dona da casa esperava com o dedo pronto no comutador do corredor — e acendeu a lâmpada.

— Viva mamãe!

— Viva vovó!

— Viva D. Anita, disse a vizinha que tinha aparecido.

— Happy birthday! gritaram os netos, do Colégio Bennett.

Bateram ainda algumas palmas ralas.

A aniversariante olhava o bolo apagado, grande e seco.

— Parta o bolo, vovó! disse a mãe dos quatro filhos, é ela quem deve partir! assegurou incerta a todos, com ar íntimo e intrigante. E, como todos aprovassem satisfeitos e curiosos, ela se tornou de repente impetuosa: — parta o bolo, vovó!

E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação, como se hesitando um momento ela toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina.

— Que força, segredou a nora de Ipanema, e não se sabia se estava escandalizada ou agradavelmente surpreendida. Estava um pouco horrorizada.

— Há um ano atrás ela ainda era capaz de subir essas escadas com mais fôlego do que eu, disse Zilda amarga.

Dada a primeira talhada, como se a primeira pá de terra tivesse sido lançada, todos se aproximaram de prato na mão, insinuando-se em fingidas acotoveladas de animação, cada um para a sua pazinha.

Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos, num silêncio cheio de rebuliço. As crianças pequenas, com a boca escondida pela mesa e os olhos ao nível desta, acompanhavam a distribuição com muda intensidade. As passas rolavam do bolo entre farelos secos. As crianças angustiadas viam se desperdiçarem as passas, acompanhavam atentas a queda.

E quando foram ver, não é que a aniversariante já estava devorando o seu último bocado?

E por assim dizer a festa estava terminada. Cordélia olhava ausente para todos, sorria.

— Já lhe disse: hoje não se fala em negócios! respondeu José radiante.

— Está certo, está certo! recolheu-se Manoel conciliador sem olhar a esposa que não o desfitava. Está certo, tentou Manoel sorrir e uma contração passou-lhe rápido pelos músculos da cara.

— Hoje é dia da mãe! disse José.

Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-cola, o bolo desabado, ela era a mãe. A aniversariante piscou. Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a carne de seu coração, Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada. Cadê Rodrigo? Rodrigo com olhar sonolento e intumescido naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria um homem. Mas, piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. Oh o desprezo pela vida que falhava. Como?! como tendo sido tão forte pudera dar á luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom homem a quem, obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão.

— Mamãe! gritou mortificada a dona da casa. Que é isso, mamãe! gritou ela passada de vergonha, e não queria sequer olhar os outros, sabia que os desgraçados se entreolhavam vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha, e não faltaria muito para dizerem que ela já não dava mais banho na mãe, jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia.

— Mamãe, que é isso! — disse baixo, angustiada. — A senhora nunca fez isso! — acrescentou alto para que todos ouvissem, queria se agregar ao espanto dos outros, quando o galo cantar pela terceira vez renegarás tua mãe. Mas seu enorme vexame suavizou-se quando ela percebeu que eles abanavam a cabeça como se estivessem de acordo que a velha não passava agora de uma criança.

— Ultimamente ela deu pra cuspir, terminou então confessando contrita para todos.

Todos olharam a aniversariante, compungidos, respeitosos, em silêncio.

Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Os meninos, embora crescidos — provavelmente já além dos cinqüenta anos, que sei eu! — os meninos ainda conservavam os traços bonitinhos. Mas que mulheres haviam escolhido! E que mulheres os netos — ainda mais fracos e mais azedos — haviam escolhido. Todas vaidosas e de pernas finas, com aqueles colares falsificados de mulher que na hora não agüenta a mão, aquelas mulherezinhas que casavam mal os filhos, que não sabiam pôr uma criada em seu lugar, e todas elas com as orelhas cheias de brincos — nenhum, nenhum de ouro! A raiva a sufocava.

— Me dá um copo de vinho! disse.

O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo imobilizado na mão.

— Vovozinha, não vai lhe fazer mal? insinuou cautelosa a neta roliça e baixinha.

— Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. — Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! me dá um copo de vinho, Dorothy! — ordenou.

Dorothy não sabia o que fazer, olhou para todos em pedido cômico de socorro. Mas, como máscaras isentas e inapeláveis, de súbito nenhum rosto se manifestava. A festa interrompida, os sanduíches mordidos na mão, algum pedaço que estava na boca a sobrar seco, inchando tão fora de hora a bochecha. Todos tinham ficado cegos, surdos e mudos, com croquetes na mão. E olhavam impassíveis.

Desamparada, divertida, Dorothy deu o vinho: astuciosamente apenas dois dedos no copo. Inexpressivos, preparados, todos esperaram pela tempestade.

Mas não só a aniversariante não explodiu com a miséria de vinho que Dorothy lhe dera como não mexeu no copo. Seu olhar estava fixo, silencioso. Como se nada tivesse acontecido.

Todos se entreolharam polidos, sorrindo cegamente, abstratos como se um cachorro tivesse feito pipi na sala. Com estoicismo, recomeçaram as vozes e risadas. A nora de Olaria, que tivera o seu primeiro momento uníssono com os outros quando a tragédia vitoriosamente parecia prestes a se desencadear, teve que retornar sozinha à sua severidade, sem ao menos o apoio dos três filhos que agora se misturavam traidoramente com os outros. De sua cadeira reclusa, ela analisava crítica aqueles vestidos sem nenhum modelo, sem um drapeado, a mania que tinham de usar vestido preto com colar de pérolas, o que não era moda coisa nenhuma, não passava era de economia. Examinando distante os sanduíches que quase não tinham levado manteiga. Ela não se servira de nada, de nada! Só comera uma coisa de cada, para experimentar.

E por assim dizer, de novo a festa estava terminada. As pessoas ficaram sentadas benevolentes. Algumas com a atenção voltada para dentro de si, à espera de alguma coisa a dizer. Outras vazias e expectantes, com um sorriso amável, o estômago cheio daquelas porcarias que não alimentavam mas tiravam a fome. As crianças, já incontroláveis, gritavam cheias de vigor. Umas já estavam de cara imunda; as outras, menores, já molhadas; a tarde cala rapidamente. E Cordélia, Cordélia olhava ausente, com um sorriso estonteado, suportando sozinha o seu segredo. Que é que ela tem? alguém perguntou com uma curiosidade negligente, indicando-a de longe com a cabeça, mas também não responderam. Acenderam o resto das luzes para precipitar a tranqüilidade da noite, as crianças começavam a brigar. Mas as luzes eram mais pálidas que a tensão pálida da tarde. E o crepúsculo de Copacabana, sem ceder, no entanto se alargava cada vez mais e penetrava pelas janelas como um peso.

— Tenho que ir, disse perturbada uma das noras levantando-se e sacudindo os farelos da saia. Vários se ergueram sorrindo.

A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua pele tão infamiliar fosse uma armadilha. E, impassível, piscando, recebeu aquelas palavras propositadamente atropeladas que lhe diziam tentando dar um final arranco de efusão ao que não era mais senão passado: a noite já viera quase totalmente. A luz da sala parecia então mais amarela e mais rica, as pessoas envelhecidas. As crianças já estavam histéricas.

— Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se a velha nas suas profundezas.

Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava. E para aqueles que junto da porta ainda a olharam uma vez, a aniversariante era apenas o que parecia ser: sentada à cabeceira da mesa imunda, com a mão fechada sobre a toalha como encerrando um cetro, e com aquela mudez que era a sua última palavra. Com um punho fechado sobre a mesa, nunca mais ela seria apenas o que ela pensasse. Sua aparência afinal a ultrapassara e, superando-a, se agigantava serena. Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo e severo sobre a mesa dizia para a infeliz nora que sem remédio amava talvez pela última vez: É preciso que se saiba. É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta.

Porém nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade era um relance. Cordélia olhou-a estarrecida. E, para nunca mais, nenhuma vez repetiu — enquanto Rodrigo, o neto da aniversariante, puxava a mão daquela mãe culpada, perplexa e desesperada que mais uma vez olhou para trás implorando à velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto dilacerante, enfim agarrar a sua derradeira chance e viver. Mais uma vez Cordélia quis olhar.

Mas a esse novo olhar — a aniversariante era uma velha à cabeceira da mesa.

Passara o relance. E arrastada pela mão paciente e insistente de Rodrigo a nora seguiu-o espantada.

— Nem todos têm o privilégio e o orgulho de se reunirem em torno da mãe, pigarreou José lembrando-se de que Jonga é quem fazia os discursos.

— Da mãe, vírgula! riu baixo a sobrinha, e a prima mais lenta riu sem achar graça.

— Nós temos, disse Manoel acabrunhado sem mais olhar para a esposa. Nós temos esse grande privilégio disse distraído enxugando a palma úmida das mãos.

Mas não era nada disso, apenas o mal-estar da despedida, nunca se sabendo ao certo o que dizer, José esperando de si mesmo com perseverança e confiança a próxima frase do discurso. Que não vinha. Que não vinha. Que não vinha. Os outros aguardavam. Como Jonga fazia falta nessas horas — José enxugou a testa com o lenço — como Jonga fazia falta nessas horas! Também fora o único a quem a velha sempre aprovara e respeitara, e isso dera a Jonga tanta segurança. E quando ele morrera, a velha nunca mais falara nele, pondo um muro entre sua morte e os outros. Esquecera-o talvez. Mas não esquecera aquele mesmo olhar firme e direto com que desde sempre olhara os outros filhos, fazendo-os sempre desviar os olhos. Amor de mãe era duro de suportar: José enxugou a testa, heróico, risonho.

E de repente veio a frase:

— Até o ano que vem! disse José subitamente com malícia, encontrando, assim, sem mais nem menos, a frase certa: uma indireta feliz! Até o ano que vem, hein?, repetiu com receio de não ser compreendido.

Olhou-a, orgulhoso da artimanha da velha que espertamente sempre vivia mais um ano.

— No ano que vem nos veremos diante do bolo aceso! esclareceu melhor o filho Manoel, aperfeiçoando o espírito do sócio. Até o ano que vem, mamãe! e diante do bolo aceso! disse ele bem explicado, perto de seu ouvido, enquanto olhava obsequiador para José. E a velha de súbito cacarejou um riso frouxo, compreendendo a alusão.

Então ela abriu a boca e disse:

— Pois é.

Estimulado pela coisa ter dado tão inesperadamente certo, José gritou-lhe emocionado, grato, com os olhos úmidos:

— No ano que vem nos veremos, mamãe!

— Não sou surda! disse a aniversariante rude, acarinhada.

Os filhos se olharam rindo, vexados, felizes. A coisa tinha dado certo.

As crianças foram saindo alegres, com o apetite estragado. A nora de Olaria deu um cascudo de vingança no filho alegre demais e já sem gravata. As escadas eram difíceis, escuras, incrível insistir em morar num prediozinho que seria fatalmente demolido mais dia menos dia, e na ação de despejo Zilda ainda ia dar trabalho e querer empurrar a velha para as noras — pisado o último degrau, com alívio os convidados se encontraram na tranqüilidade fresca da rua. Era noite, sim. Com o seu primeiro arrepio.

Adeus, até outro dia, precisamos nos ver. Apareçam, disseram rapidamente. Alguns conseguiram olhar nos olhos dos outros com uma cordialidade sem receio. Alguns abotoavam os casacos das crianças, olhando o céu à procura de um sinal do tempo. Todos sentindo obscuramente que na despedida se poderia talvez, agora sem perigo de compromisso, ser bom e dizer aquela palavra a mais — que palavra? eles não sabiam propriamente, e olhavam-se sorrindo, mudos. Era um instante que pedia para ser vivo. Mas que era morto. Começaram a se separar, andando meio de costas, sem saber como se desligar dos parentes sem brusquidão.

— Até o ano que vem! repetiu José a indireta feliz, acenando a mão com vigor efusivo, os cabelos ralos e brancos esvoaçavam. Ele estava era gordo, pensaram, precisava tomar cuidado com o coração. Até o ano que vem! gritou José eloqüente e grande, e sua altura parecia desmoronável. Mas as pessoas já afastadas não sabiam se deviam rir alto para ele ouvir ou se bastaria sorrir mesmo no escuro. Além de alguns pensarem que felizmente havia mais do que uma brincadeira na indireta e que só no próximo ano seriam obrigados a se encontrar diante do bolo aceso; enquanto que outros, já mais no escuro da rua, pensavam se a velha resistiria mais um ano ao nervoso e à impaciência de Zilda, mas eles sinceramente nada podiam fazer a respeito: “Pelo menos noventa anos”, pensou melancólica a nora de Ipanema. “Para completar uma data bonita”, pensou sonhadora.

Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contingências, estava a aniversariante sentada à cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior do que ela mesma. Será que hoje não vai ter jantar, meditava ela. A morte era o seu mistério.


LISPECTOR, Clarice. Laços de Família, Rio de Janeiro: Rocco, 1998: 54-57

sábado, 19 de março de 2011

POR QUE O PRESIDENTE OBAMA NÃO VAI VER O INIMITÁVEL EX-PRESIDENTE LULA NESTA SUA VIAGEM AO BRASIL?



POR QUE O PRESIDENTE OBAMA NÃO VAI VER O INIMITÁVEL EX-PRESIDENTE LULA NESTA SUA VIAGEM AO BRASIL?


NEUZA MACHADO

Meus queridos leitores (os que comungam com os meus bons pressentimentos políticos para o Brasil quiçá para o Mundo), peço-lhes que leiam, no Site Conversa Afiada do Jornalista Paulo Henrique Amorim, o artigo: POR QUE OBAMA NÃO VAI VER O NUNCA DANTES? É um artigo muito interessante e esclarecedor — www.conversaafiada.com.br/mundo/2011/03/19/por-que-o-obama-n%C3%A3o-vai-ver-o-nunca-dantes-por-causa-do-ira/om.br/mundo/2011/03/19/por-que-o-obama-n%C3%A3o-vai-ver-o-nunca-dantes-por-causa-do-ira/ — (não se preocupem com o termo “Nunca Dantes”, é elogio ao Presidente Lula, não possui conotação ofensiva).






BRASIL PANDEIRO




Autor: Assis Valente




Hoje, 19/03/2011, data do centenário de nascimento de Assis Valente, autor de Brasil Pandeiro.





quarta-feira, 16 de março de 2011

CONSCIÊNCIA DA LINGUAGEM: NOVO DINAMISMO PSÍQUICO

CONSCIÊNCIA DA LINGUAGEM: NOVO DINAMISMO PSÍQUICO

NEUZA MACHADO

Uma imagem literária imitada perde a sua virtude de animação. A literatura deve surpreender. Certamente, as imagens literárias podem explorar imagens fundamentaise nosso trabalho geral consiste em classificar essas imagens fundamentais –, mas cada uma das imagens que surgem sob a pena de um escritor deve ter a sua diferencial de novidade. Uma imagem literária diz o que nunca será imaginado duas vezes. Pode-se ter algum mérito em recopiar um quadro. Não se terá nenhum em repetir uma imagem literária. (Gaston Bachelard)

Em meados do século XX, o escritor mineiro Guimarães Rosa surpreendeu os meios intelectuais brasileiros valendo-se de uma linguagem fora dos padrões habituais para desenvolver a sua arte literária. Naquele momento, Guimarães Rosa conseguiu a sua diferencial de novidade recriando a antiga técnica de contar estórias exemplares, à moda do sertão de Minas, mas, retiradas criativamente de seu imaginário particular, singularíssimo. Graças a essa diferente forma de narrar, extraiu das recordações íntimas o aspecto altivo do homem sertanejo sustentado pelo primitivismo de uma existência alheada dos valores modernos. O escritor, de origem sertaneja, rejeitando os valores da modernidade, as regras linguísticas formais, as imagens mascaradas (limitadas), e buscando o linguajar primordial (provocador), a imaginação material (reprodutora) aliada à imaginação criadora (dinâmica), tornou-se um ativo modelador de um universo diferente (Bachelard). Não quis apenas contemplar o sertão da infância, recriou-o, domou a matéria terra, e venceu a natureza.

Guimarães Rosa, em suas primeiras narrativas, uniu terra e água em uma massa perfeita. Às vezes, sobressaindo-se mais a terra, outras, a água. Mas, se tivesse registrado apenas o seu ato de modelar o sertão da infância, por intermédio da imaginação reprodutora, não teria legado aos pósteros a sua indiscutível arte ficcional. Ele explorou as imagens reprodutoras, desenvolvendo, inicialmente, o ato de bem ver a realidade sertaneja, mas soube atingir o domínio de uma imaginação fundamentalmente criadora, quando rejeitou a cultura realista e passou a bem sonhar o seu passado inesquecível, permanecendo fiel ao onirismo dos arquétipos que [estavam] enraizados [em seu] inconsciente. (Bachelard)

Nas recordações da infância, momentos de pura inspiração o impelem à modelação de trechos narrativos de alta criatividade. Por exemplo, reconstituindo as façanhas infantis de um grupo de crianças, em “A partida do audaz navegante” (Guimarães Rosa), propicia-nos um retorno ao regaço materno, seja qual for a significação que queiramos dar a esta expressão: retorno ao útero materno, retorno aos braços carinhosos da mãe, retorno às origens, ou, mesmo, retomada dos valores puros da terra/sertão.

Bachelard nos alerta:

Afastar a criança da cozinha é condená-la a um exílio que a aparta dos sonhos que nunca conhecerá. Os valores oníricos dos alimentos ativam-se ao se acompanhar a preparação. Quando estudarmos os sonhos da casa natal, veremos a persistência dos sonhos da cozinha. Esses sonhos mergulham num feliz arcaísmo. Feliz o homem que, em criança, “rodou em volta” da dona da casa. (Gaston Bachelard)

Nesta narrativa, que assinala um dos mais inspirados momentos criativos de Guimarães Rosa, há um retorno ao regaço materno, revelando o homem que em criança conheceu as delícias feitas em fogão de lenha. O sertão roseano é o invólucro do sonho da casa natal, repleno de lembranças e recordações. Assim, por exemplo, uma certa manhã de chuva (água) mistura-se à terra, formando a massa de lembranças imperecíveis. Desse composto de água e terra, evola-se  ficcionalmente  o cheiro dos alimentos de outrora somado às recordações do passado infantil, no qual o menino de então observava sua mamãe mandando Maria Eva estrelar ovos com torresmos e descascar os mamões maduros. Os sonhos da cozinha estão presentes e vivos nas lembranças (matéria ficcional) e recordações (matéria lírica) do narrador de antigas experiências infantis. Mas, o sonhador das vivências inesquecíveis, agora, já se aliou definitivamente à imaginação criadora e consegue transmitir ficcionalmente os inumeráveis planos de sua consciência singular.

Nos sonhos da casa natal, terra, chuva, cozinha e lama se misturam para realçar a figura materna. Num meio repleto de primitivismo, mamãe é a mais bela, a melhor, e cuida com orgulhos e olhares as três meninas e o menino.

O Artista  aquele que saiu do sertão dos valores primitivos e adquiriu inúmeros talentos na moderna sociedade brasileira  remodela a figura materna por intermédio de um olhar infantil. Não estaríamos violando regras teórico-críticas, apoiados que estamos na idéia de compreensão do texto literário  fenomenologia , se afirmássemos que é ele  o Artista Ficcional Guimarães Rosa  o menino que admira a mãe, e que esta admiração só se revelará valiosa mediante a percepção infantil aliada à criatividade do adulto. Graças à percepção infantil, aquecida pelo fogo familiar permanentemente aceso nas lembranças do passado, iluminando as recordações do adulto, a voz de mamãe se transforma em uma voz de vogais doçuras e a manhã se faz de flores.

No início, o elemento fogo se sobressai para o cozimento da massa formada pela terra e pela água. Na cozinha das recordações, os alimentos se tornam saborosos, e a doce voz materna também se transforma em alimento, nutrindo a criança, oferecendo-lhe condições de desenvolver o corpo e os sonhos.

A cozinha é o gineceu do sertão roseano, e a sua criação literária só foi possível graças a essa íntima e doce convivência com a terra e a água. Em seus devaneios de dilatação da massa que irá ao forno da criação literária, o criador de um mundo ficcional (sustentado pelas lembranças de uma infância feliz), onde os valores poéticos se sobressaem, registra a imagem da mãe, dosando açúcares e farinhas para a feitura de um bolo, enquanto as crianças entrefiam a estória do audaz navegante, descobridor de lugares além do cotidiano.

Esta narrativa, oriunda dos sonhos dilatados do amanhecer  dos devaneios da vontade de um sonhador-modelador, que sabe trabalhar sua criatividade ficcional , é uma massa de palavras bem dosadas. O estilo inconfundível de Guimarães Rosa se faz presente nesta aparentemente simples narrativa, mas, em suas camadas ocultas há uma profunda natureza complexa. As verdadeiras fontes do estilo são fontes oníricas. Um estilo pessoal é o próprio sonho do ser (Bachelard). Sob a proteção do olhar infantil, o narrador acompanha os movimentos de mamãe, transforma Pele  a irmã  em uma criança diligentil, além de dar forma a uma imagem ímpar: Ciganinha  a outra irmã  lendo um livro sem virar a página. Percebe-se, neste discurso inovador, os valores imaginários da criança em seu mais alto grau. A massa perfeita encontrou seu elemento individualizador, pode transformar o audaz navegante e seu navio  núcleo de uma sub-estória dentro da narrativa  numa coisa vacum, atamanhada, embatumada, semi-ressequida, obra pastoril no chão de limugem, e às pontas dos capins-chato deixado. Um cogumelo branco se transforma no audaz navegante, bamboleando em cima da tal coisa  o navio , que está prestes a ser tragada pela enchente produzida pela chuva anterior.

O escritor, agora vivenciando o cogito(3) da consciência singular (Bachelard), possui total conhecimento da linguagem infantil. Graças a essa nova convivência com um plano de difícil acesso, próximo das inconsequências quânticas (Bachelard), a narrativa de um simples dia de chuva atrelado ao universo infantil transmite um novo dinamismo psíquico (Bachelard). A imaginação material  matéria terrestre: o sertão composto de pedras, madeiras, metais e gomas  associa-se à imaginação das matérias inconsistentes e móveis  a água, o fogo e o ar , reprodutora da percepção e da memória. Desta associação surge a imaginação criadora do Artista Ficcional, retirada de sua própria solidão de homem há muito apartado dos valores primários. O Criador Literário refaz a imaginação infantil, uma imaginação intermediária entre as pulsões inconscientes e as primeiras imagens que afloram na consciência. Surge, assim, um discurso diferente, insólito, renovando os arquétipos inconscientes da criança, aquela que repensa o itinerário de aventuras do Audaz Navegante.

Inspirado pela linguagem inerente à criança, ele remodela linguagem ficcional, enriquecendo-a com as recordações da infância. A narrativa surpreende e encanta, porque o leitor refaz também os primórdios de seu próprio passado. Todas as mamães se transformam em fadas, surgindo inesperadamente  de contra-flor , para socorrerem seus filhinhos. (Guimarães Rosa)

O sonhador de um imaculado sertão (perfeição = matéria épica digladiando com a forma ficcional do século XX), distante temporalmente de sua realidade imediata, reinventa seu passado inesquecível, as possibilidades perdidas, os sonhos revividos nos momentos de solidão.

No sonho, as palavras reencontram amiúde o seu sentido antropomórfico profundo. Aliás, pode-se observar que a modelagem inconsciente não é coisista; é animalista. A criança entregue a si mesma modela a galinha ou o coelho. Cria vida. (Gaston Bachelard)

As palavras remodelam o homem e a vida, refazem as imagens do inconsciente, dão substância aos pensamentos e, aqui, dão substância aos pensamentos de um criador ficcional que se apossa engenhosamente do universo infantil. A modelagem inconsciente, retirada dos sonhos da infância, faz o leitor-eleito retornar às alegrias primeiras da descoberta da vida. Nessa região psíquica, entre as pulsões inconscientes e as primeiras imagens da consciência infantil, o narrador-mirim de um sertão imaculado, avatar do narrador moderno (submetido diariamente a experiências comunitárias conflitantes), recria seu antigo mundo familiar, transformando uma manhã de chuva normal em uma narrativa onírica e poética, propulsora de profundas meditações para esse mesmo leitor.

terça-feira, 15 de março de 2011

CLARICE LISPECTOR - UM “AMOR” DE NARRATIVA

CLARICE LISPECTOR - UM “AMOR” DE NARRATIVA

NEUZA MACHADO

Nesta postagem, é meu propósito reverenciar a escritora Clarice Lispector, uma das mais sublimes criadoras ficcionais da literatura brasileira do século passado. E atendendo às solicitações dos admiradores dos “incomuns” e excelentes contos desta notável escritora, os quais enviaram-me seus pedidos, escolhi o conto “Amor” por revelar, com especial importância, aos leitores deste ímpar texto ficcional qual era o papel da mulher brasileira em meados do século XX. Por meio da personagem Ana, Clarice representou a mulher brasileira que, sem ter perspectivas de ser feliz e submetida às normas sociais retrógradas, compreendia a necessidade de continuar vivendo um tipo de vida que, se dependesse apenas de sua vontade, já a teria transmudado há muito tempo.

Infere-se, a partir do texto, que a personagem Ana era uma pessoa acomodada e que, mesmo conformada, sem perceber que o seu mundo familiar se esfacelava, buscava manter-se imune diante de uma provável revolução existencial, não se deixando dominar pelas paixões desestabilizantes. Infere-se, também, que ela abafava seus desejos individuais para manter o bem-estar de sua família.

Até que, um dia, depois de fazer umas compras necessárias para um jantar em família, voltando para casa de bonde, Ana foi surpreendida pelo insólito: “um cego mascando chicles” e fazendo movimentos labiais grotescos, gozando a plena liberdade de viver...


AMOR

Clarice Lispector


Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranquila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. O sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranquila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.


Texto extraído no livro Laços de Família, Editora Rocco, Rio de Janeiro: 1998.

quarta-feira, 9 de março de 2011

ARRAS POR FORO DE ESPANHA: A QUESTÃO DO HERÓI ROMÂNTICO NA LITERATURA PORTUGUESA

ARRAS POR FORO DE ESPANHA: A QUESTÃO DO HERÓI ROMÂNTICO NA LITERATURA PORTUGUESA

NEUZA MACHADO

Alexandre Herculano foi soldado, foi poeta, mas, sobretudo, foi um excepcional narrador das origens e lendas de Portugal. Paralelamente ao seu ofício de Historiador, o escritor romântico português desenvolveu por meio de diretivas ficcionais um modo todo especial de reviver a história do passado de sua nação, dando-lhe um aspecto quase lendário. Observa-se isto em muitas de suas obras, como “O Bispo Negro”, por exemplo, no qual o plano sócio-substancial da narrativa se entrelaça de forma admirável com o imaginário-em-aberto da autêntica criação literária. Em “O Bispo Negro”, Alexandre Herculano, querendo desmitificar a aura de santidade de Afonso Henriques, que se tornou conhecido pelos pósteros como de origem divina, cria-lhe outra aura: a de homem valente e irascível, que não teme nem mesmo a ira de Deus. Em um certo momento da narrativa, ao exigir que o Papa revogasse a sua excomunhão, Afonso Henriques não o faz por medo dos castigos do inferno, mas para reforçar a sua condição de rei, isto é, o seu prestígio como rei. Para tal exigência, usa até mesmo a força física. Quanto ao bispo “negro” será que em verdade existiu? Não se sabe com plena certeza, e aí entra o lendário.

Em “Arras por foro de Espanha”, Herculano não foge à regra. É uma narrativa histórica, repleta das características intrínsecas do romantismo português do século XIX, principalmente a característica da retomada de valores medievais, e, por tal razão, ambientada em pleno século XIV, assim como “O Bispo Negro”, que se estabelece no século XII.

Por intermédio da análise linear há a possibilidade de se detectar uma parte da trajetória do reinado de Dom Fernando, 4o rei da Segunda Dinastia de Portugal, e seu problemático casamento com Dona Leonor Teles de Meneses. Alexandre Herculano realça a idéia de que o povo português da época não aceitava tal união, por julgá-la indigna de seu rei. Dona Leonor já era casada com João Lourenço da Cunha e, mesmo assim, conseguiu conquistar o amor do rei para satisfazer a sua ambição de poder. O rei julgava-se amado e por isso não via esse aspecto negativo da personalidade de Dona Leonor. Estava cego de paixão, mas o povo via, e sofria. Os nobres também desaprovavam, pois a união com uma mulher casada não se adequava às leis religiosas e políticas da fase final da Idade Média. Assim, a nobreza, maledicente e descontente, soube direcionar aos ouvidos da população os indícios de sua própria revolta, e que resultou logo depois em muito sangue derramado (o dote exigido pela rainha) e na vitória da adúltera.

Para um leitor menos exigente, isto é o que fica de concreto em relação à história recontada ficcionalmente por Alexandre Herculano. Mas, na verdade, ao ler-se uma obra ficcional, principalmente quando esta for considerada de primeiríssima qualidade, o leitor analista e/ou intérprete não deverá fixar-se apenas em palavras e orações, e, muito menos, decorar o conteúdo escrito; o que deverá permanecer em seu intelecto é a compreensão do não-dito da obra analisada, ou seja, aquilo que o escritor deixou latente nas entrelinhas da camada visível de seu texto literário. Por exemplo, em uma análise mais profunda, aliada à interpretação fenomenológica, pode-se captar o invisível do texto-arte, isto é, aquilo que só é detectável com o auxílio do entendimento.

Em “Arras por foro de Espanha”, Alexandre Herculano oferece ao leitor uma narrativa dividida em sete partes (é natural em Herculano o uso dos números cabalísticos). Em cada parte se desenvolve um tipo diferente de narração (observar as diferenças inerentes aos conceitos de narrativa e narração), cada qual entremeada por ações distintas. Em todas as narrativas de Herculano não há como se observar um fio narrativo com episódios simultâneos. Os episódios são, ao contrário, estanques, carregados de uma forte carga emocional, episódios semelhantes a quadros que, dispostos ao longo de uma parede, narrassem ao apreciador as peripécias de um momento do passado. O escritor romântico Alexandre Herculano, graças a um narrar singularíssimo, apesar das diretrizes formais de seu momento estético, se metamorfoseia em pintor/ficcionista e, assim, por meio de palavras, oferece aos leitores dos séculos seguintes quadros vivos de um passado distante. Por intermédio de pinceladas narrativas fortes e seguras, caracteriza as personalidades de seus personagens ficcionais.

Em verdade, os personagens em questão existiram, fizeram parte da História da nação portuguesa. Mas, graças ao poder narrativo de Herculano, passam a existir na mente do leitor do porvir por meio do plano metafísico. O caráter diabólico de Dona Leonor adquire uma faceta irreal. Alguns leitores custam a aceitar (outros já aceitam de imediato) o fato de ter existido, em realidade, uma mulher tão pérfida e ambiciosa, sem um mínimo rasgo de bondade. Esta inaceitabilidade gera a dúvida, a dúvida gera a compreensão, a compreensão gera a modificação. O que isto quer dizer? Quer dizer que começam a aparecer perguntas e reflexões, de acordo com a sensibilidade ou de acordo com o conhecimento de cada um. Assim, um determinado leitor neófito poderá dizer: “Que mulher perversa, má, interesseira, sem princípios!” Aí poderá vir o contraponto também de um outro leitor neófito: “Coitada! Foi tão perseguida, caluniada, enlameada. Será que ela não tinha o direito de ser amada? Será que ela foi realmente má? Não teria Herculano (ou a História) acentuado um caráter forte que poderia não ser tão mau assim? Será que ela não foi vítima dos acontecimentos em vez de carrasco?” Assim, graças a pensamentos especulativos, passa-se a uma espécie de compreensão primária das mensagens temporais que estão ocultas no texto ficcional, historicamente passa-se a modificar o caráter dos personagens. O leitor não seria humano se não agisse assim.

Entretanto, o estudioso da literatura portuguesa, desenvolvendo um ponto de vista analítico mais elaborado, poderá aprofundar-se em princípio em sua análise e, posteriormente, na compreensão fenomenológica desta narrativa de Alexandre Herculano em particular, cujo conteúdo naturalmente submete-se ao modelo romântico, e dela retirar as impressões pessoais do autor, as quais se ocultam nas entrelinhas de sua ficção.

Pelo ponto de vista da livre interpretação, escorada naturalmente nos preceitos da orientação fenomenológica, o leitor atento poderá descobrir que a narrativa apresenta um Dom Fernando fraco, subjugado pela paixão por uma mulher de caráter interesseiro. É aceitável essa fraqueza. É comovente a grandiosidade dessa paixão. Mas, ele não foi tão fraco ao enfrentar a oposição da nobreza e do povo em relação ao seu casamento (se bem que a narrativa faz crer que ele era conduzido pelas mãos firmes de Dona Leonor), pois se fosse fraco acataria a decisão da maioria. Não foi fraco, por exemplo, ao selar a condenação dos traidores. Será que, realmente, ele “sentiu horror” ao assinar a condenação? Ou ele, também, era conivente com as idéias de vingança de Dona Leonor? Quem poderá afirmar com certeza o que se passa no coração humano? E, além disso, não se deve esquecer que a história de Herculano segue os pressupostos do romantismo português do século dezenove, e que o conteúdo ficcional da mesma destaca a época de barbarismos da Idade Média. Matar, naquele período medieval era um ato comum. As vinganças também.

Está claro que Herculano, como um fecundo narrador filiado à estética romântica, e principalmente como historiador, possuía um primoroso conhecimento da História de Portugal. A verdade é que, por mais que mostre o caráter negativo de Dona Leonor, ele deixa uma frestazinha, mínima, oferecendo ao leitor a possibilidade de amar a personagem ao invés de odiá-la. Ao ler a frase, já no final da narrativa, “Dona Leonor triunfara”, o leitor de Herculano sente um certo júbilo. É a vitória do mais forte, pelo ponto de vista do padrão narrativo romântico, não importando o sangue derramado. O leitor da estética romântica ama os fortes e corajosos, os fracos não têm vez. O herói ou heroína do Romantismo, ao final, sairá sempre como vencedor

E, Dom Diniz, o meio-irmão de D. Fernando? Este, ao longo da narrativa, é apenas um dos candidatos ao trono vago com a morte do irmão monarca, ou seja, nos domínios da ficção é a força motriz para gerar confusões. Dom Diniz é tão ambicioso quanto Dona Leonor, talvez até mais, pois não se acanha em unir-se ao matador de sua mãe, na tentativa de derrubar aquela que se tornara um entrave às suas pretensões. Herculano pinta-o como um jovem orgulhoso e cheio de brios ao enfrentar o irmão, recusando-se a beijar a mão de Leonor Teles, mas, basta que o analista literário busque o auxílio da História e achará assentado o caráter brigão e virulento do infante. Retomando a História de Portugal, o leitor-analista poderá descobrir que Dom Diniz, em virtude de sua desavença com Leonor Teles, exila-se. Posteriormente, retorna a Portugal, após a batalha de Aljubarrota, mas, o novo rei, Dom João I de Avis (também seu meio-irmão), que já conhecia o caráter irrequieto do infante, envia-o à Inglaterra. Alguns anos depois, torna-se prisioneiro de piratas flamengos. Depois de um longo cativeiro, vai para a Espanha, onde passa a lutar contra Portugal.

Em “Arras por foro de Espanha”, Dom Diniz é o único que não se dobra aos caprichos da rainha, mas também não termina como um vencedor (à moda das regras estilísticas da estética romântica). Afasta-se de cena, à meia-noite, dentro de uma barca que “subia com dificuldade a corrente rápida do Douro”.

Quanto ao povo (a “arraia miúda”), este, por si só, vale como personagem. Não há distinções hierárquicas entre o povo. Excetuando-se Fernão Vasques, eleito porta-voz da população, ninguém se destaca em particular. Mas o povo em “Arras por foro de Espanha” é grandioso ao lutar e pequeno e insignificante na derrota. É para se lamentar sempre a sorte de um povo que se acomoda à ideologia dominante, que se concilia ao patriarcalismo milenar. Alcácer por Sua Senhoria!

Outros personagens aparecem ao longo da narrativa de Herculano (Frei Roy, Mestre Bartolomeu Chambão e outros) ajudando a formar os elos da intriga ficcional atrelada ao modelo da ficção romântica. Entre todos é ainda a figura ímpar da malvada rainha que se destaca. Ela é a alma da narrativa. Ela é terrível em sua vingança, mas sem ela a história do rei D. Fernando de Portugal seria outra.

Neuza Machado - neumac@oi.com.br

terça-feira, 8 de março de 2011

VIVA O DIA INTERNACIONAL DA MULHER

VIVA O DIA INTERNACIONAL DA MULHER!

NEUZA MACHADO


Para todas as Mulheres do Brasil e do Mundo, Um Feliz Dia Internacional da Mulher!

terça-feira, 1 de março de 2011

FELIZ ANIVERSÁRIO CIDADE DO RIO DE JANEIRO

FELIZ ANIVERSÁRIO CIDADE DO RIO DE JANEIRO

NEUZA MACHADO

Feliz Aniversário Cidade Maravilhosa!


Minha Querida Cidade!

Diz o ditado popular que Deus é brasileiro, melhor dizendo, eu diria que Ele é Carioca, e eu, que nasci mineira e me tornei carioca, tenho que reconhecer que o Supremo Criador caprichou no design, porque essa mistura de linhas montanha-mar é de deslumbrar!

Entretanto, minha querida Cidade, de vez em quando algumas inimagináveis transformações geológicas acontecem. Mas, hoje, dia do seu aniversário, eu quero esquecer os terríveis problemas climáticos que nos afetaram no mês de janeiro e lembrar somente das coisas boas que todo carioca sente e não se cansa de compartilhar.

Para comemorar mais um ano de sua gloriosa vida, é de vital importância relembrar suas qualidades: “berço do samba e das lindas canções”, “coração do Brasil”, “terra que a todos seduz”, além de outras. Sem esses atributos reunidos, o Mito da Cidade Maravilhosa, inicialmente registrado pelo cronista Coelho Neto, não teria se estabelecido.

E, como o mito ainda não morreu, o HINO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, de André Filho, ainda pode ser cantado, senão com a força de seus primórdios, pelo menos com mais sinceridade.


HINO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

André Filho


Cidade maravilhosa,
Cheia de encantos mil
Cidade maravilhosa,
Coração do meu Brasil!

Berço do samba e das lindas canções,
Que vivem n’alma da gente.
És o altar dos nossos corações
Que cantam alegremente!

Cidade maravilhosa,
Cheia de encantos mil
Cidade maravilhosa,
Coração do meu Brasil!

Jardim florido de amor e saudade,
Terra que a todos seduz...
Que Deus te cubra de felicidade...
Ninho de sonho e de luz!

Cidade maravilhosa,
Cheia de encantos mil
Cidade maravilhosa,
Coração do meu Brasil!