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domingo, 11 de março de 2012

CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESCRITOR, O NARRADOR E A NARRATIVA - 5


CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESCRITOR, O NARRADOR E A NARRATIVA - 5

NEUZA MACHADO

“Sabemos que a obra exige necessariamente a presença do artista criador. O que chamamos arte coletiva é a arte criada pelo indivíduo a tal ponto identificado às aspirações e valores do seu tempo, que parece dissolver-se nele, sobretudo levando em conta que, nestes casos, perde-se quase sempre a identidade do criador-protótipo.” (Antônio Cândido)

Para Antônio Cândido, a obra de arte sempre exigirá a presença do criador. No caso específico da arte literária, modalidade narrativa ficcional, alguns teóricos procuram separar artista e narrador, como, por exemplo, o francês Roland Barthes, estruturalista (sua primeira fase), quando diz que o narrador é personagem como outro qualquer, e que não se deve confundi-lo com o artista (tal citação repetida ad infinitum, nas Faculdades de Letras brasileiras por alguns professores de teoria da literatura que não se preocupam com as devidas reciclagens e que não param para pensar que o próprio Roland Barthes modificou seus pensamentos teóricos ao longo de sua carreira intelectual). Conscientemente, contrariando a assertiva do consagrado teórico francês (assertiva, como já disse, de sua primeira fase estruturalista), penso no narrador do século XX (incluindo os narradores de Guimarães Rosa a partir de A Hora e Vez de Augusto Matraga) também como personagem atuante, realçando-o como parte integrante do criador de narrativas ficcionais, pois nele se instala ou se desenvolve a face ficcional do escritor do século XX.

Na obra em questão, há a presença do ficcionista Guimarães Rosa, homem nato do sertão mineiro (sertão rude), mas que alcançou honrarias no âmbito hierarquizante da sociedade. No entanto, há, com maior destaque, a presença do escritor-indivíduo, paradoxal e questionador, em conflito com valores que se opõem. Guimarães Rosa, desenvolvendo seus diversos talentos, posicionou-se positivamente diante da brasileira sociedade elitista, alcançando credibilidade como médico e diplomata, mas, paradoxalmente, enquanto escritor ficcionista, preferiu dar-se a conhecer como homem provindo do sertão de Minas Gerais.

Evidentemente, esse homem do sertão já não é do sertão propriamente dito, apenas a formalização do ser, em suas narrativas, foi realizada em cima das formas-pensamento sertanejas. O escritor, nascido no sertão, lembra do sertão, ou melhor, recorda (ver o sentido etimológico) o sertão, não sendo mais do sertão. O escritor assume o sertão, que está presente em seus pensamentos argumentadores, quando questiona as imperfeições do mundo moderno. O sertão de suas narrativas é puro (matéria épica), porque foi vivenciado nos anos da infância e juventude. O sertão continua puro nas recordações do indivíduo (matéria lírica), porque este, como ficcionista, manipula essa pureza, ao descrevê-lo ficcionalmente. Assim, quando Guimarães Rosa diz a Lorenz, na ENTREVISTA, “eu sou antes de mais nada um homem do sertão”, ele próprio sabe, intimamente, que já não é do sertão, não faz parte mais daquela realidade. Ao categorizar, ele já não é mais sertanejo. E é graças a esta singular matéria de vida, íntima e social, que a sua narrativa não se insere no âmbito do coletivo. Sua arte é moderna (ou de transição, ou pós-moderna) e, paradoxalmente, evita realçar os valores da modernidade.

O artista literário, enquanto narrador sertanejo, não se identifica com “as aspirações e valores de seu tempo”, mas, ao mesmo tempo, não pode furtar-se a se expressar como um narrador do século XX e isto se evidencia em seu discurso. O mundo roseano é um núcleo perfeito, seus personagens também são perfeitos, mas o narrador reflete as imperfeições de sua realidade vivencial. A ótica dele se encontra fragmentada (característica moderna), porque não se atém ao tempo linear. Ele já alcançou um plano onde o passar histórico não o influencia, prevalecendo mais o desejo de preencher as lacunas da memória com um discurso repleto de tensão lírica (matéria lírica colaborando com a narrativa ficcional). Ainda pelo meu ponto de vista, no entanto auxiliada pelos ensinamentos de Bachelard sobre o tempo, importa-lhe mais destacar o que se encontra suspenso entre o repouso e a ação. E é graças a esse momento, suspenso entre o repouso e a ação, que o narrador roseano sai da objetividade histórica e se enreda em seus próprios circunlóquios, tenta trazer à luz o que pressentiu, em termos de narrativa em prosa, a partir de seu próprio repouso sócio-existencial vinculado ao “repouso fervilhante” do escritor, e que se encontra estacionado no plano da reflexão profunda (conferir: Gaston Bachelard).

As recordações da infância no sertão mineiro, certamente, marcaram o escritor. As histórias de senhores-de-terra valentes encontraram ressonância em seu espírito, marcaram-no vivamente. Mas essas recordações só foram recuperadas por meio de posteriores questionamentos (fervilhantes). Depois que seu narrador de A hora e vez de Augusto Matraga desorganizou temporalmente a já distinguida narrativa ficcional, que se dissociou da aparente realidade das lembranças (enquanto produto da memória), só então conseguiu livrar-se da narrativa sintagmática. O narrador pensou o sertão de sua infância (o escritor pensou o sertão de sua infância); buscou a síntese do ser na essência do ser, do vir a ser; sumariou, resumiu o sertão poeticamente, e conseguiu chegar a um final discursivo totalmente distante dos valores substanciais.

Graças a esta elevação mental, que o colocou distante do “penso, logo existo” cartesiano, e fixou em um terceiro cogito o “penso que penso que penso”, segundo teorizações bachelardianas, o escritor pode manifestar um sertão só dele, íntimo e poético, imune às exigências econômicas e sociais da modernidade, apesar de, eventualmente, refletir algumas imperfeições do mundo burguês capitalista. Ao mesmo tempo, observando este sertão roseano diferente, conscientizo-me do subdesenvolvimento que o atinge, porque a consciência deste subdesenvolvimento está em mim mesma, e posso, assim, desenvolver uma comparação racional, refletir as diferenças que existem entre os dois sertões: o real e o ficcional.

É importante reconhecer que os personagens de Guimarães Rosa, depois do Augusto Matraga, não são marcados pelo subdesenvolvimento, são simplesmente sertanejos, e agem como sertanejos. E, principalmente, não são alienados, porque qualquer narrativa que propicie uma outra qualquer espécie de reflexão, e que tenha como base os problemas de uma outra realidade, deprimente, não poderá ser considerada alienada. Se nos primeiros contos de Sagarana visualizou-se a consciência do subdesenvolvimento brasileiro de meados do século XX, centralizado em problemas regionais (vide “Sarapalha”), a dimensão regional em Guimarães Rosa, posteriormente, passa para o plano universal, graças a uma técnica de narrativa refinada, que propicia a transfiguração da realidade interiorana de Minas Gerais, e que, paradoxalmente, não deixa de refletir os valores reais do mundo sertanejo.

Essa transfiguração se faz por intermédio do discurso poético-ficcional, do monólogo interior, da visão simultânea, e outras técnicas discursivas que levam o leitor de Guimarães Rosa a refletir suas próprias substâncias de vida e se conscientizar cada vez mais do subdesenvolvimento e/ou desenvolvimento de seu próprio país (seja ele um leitor brasileiro ou leitor de qualquer outro país dos chamados Primeiro Mundo e Terceiro Mundo).

O narrador roseano de A hora e vez de Augusto Matraga, universalizando o sertão, extrapassa os contornos geográficos do sertão mineiro de seu momento histórico através de uma visão baseada nas diversas experiências de vida do escritor, aquele homem nato de um “mundo puro”, mas que alcançou outros patamares no elitista mundo do século XX.

Bachelard afirma que as pessoas agem impulsionadas pelo elan vital, ou seja, agem impulsionadas pelo arrebatamento súbito e efêmero, que as arrasta para longe dos objetivos individuais. Isto acontece quando elas se deixam levar pelo impulso do grupo, imitando-o, e assim desistem da intuição, passando a não ter reflexão própria (qualidade para se chegar ao objetivo individual), renunciando assim à própria inteligência.

A realidade do Brasil até aos anos finais do século XX foi um reflexo desse fenômeno de submissão mental. Antônio Cândido demonstrou que a literatura brasileira, do período de 30 e 40, refletiu esta situação, com a chamada “consciência do subdesenvolvimento”. Foi a partir de 1930 que alguns escritores não mais aceitaram reproduzir a realidade convencionada, se rebelaram contra os conceitos preestabelecidos, enfim, sofreram uma crise de valores que os levou a mudarem a técnica da narrativa. No lugar da reprodução da realidade, assumiram a criação de uma outra realidade transfigurada, fazendo da própria literatura uma realidade desmitificadora, ou seja, reivindicando a realidade da literatura. Graças a esta decisão, o ficcionista passou a ter consciência de seu fazer literário, posicionando-se frente a sua matéria de trabalho, criando e recriando o texto, se preocupando com o texto, desenvolvendo ensaios e fazendo experiências.

Pelo meu ponto de vista, Guimarães Rosa atingiu essa consciência instrumental, porque a sua literatura não se atém a uma simples expressão da realidade, existe nela uma realidade própria. O sertão de suas narrativas é uma realidade diferente da realidade do sertão do Norte de Minas Gerais, por isto, o sertão roseano é um espaço primitivo e imaculado. Por estas razões, há nele uma certa insolidez, observada na linguagem diferente, transformando-se em solidez no âmbito do ficcional. Assim, com o passar do tempo e das inúmeras futuras leituras críticas de teóricos gabaritados, demonstrará sempre uma realidade particular, própria, acrescida de substâncias poéticas. Sertão paradoxal. Sertão paradoxal porque não há como acusar uma cisão, já que aparentemente seus narradores não se distanciam da denominação de “narradores regionalistas”; aparentemente não se afastam das raízes regionais; seus narradores são “regionalistas irrealistas”, segundo Antônio Cândido.

O diferente sertão roseano, pelo meu ponto de vista interativo, revigorado evidentemente nas fontes bachelardianas, só poderia surgir de uma mente reflexiva, consciente de sua capacidade de escolha, localizada entre o eu profundo e o eu externo.

Nesse estágio, o escritor manipula o tecido narrativo, transfigurando artisticamente a realidade do sertão. Ele faz seu passado de sertanejo vir à tona, exatamente como foi vivenciado na época da inocência, e poetiza essas recordações. Poetiza, ensaia e faz experiências: cria um sertão particular no interior de um linguajar diferente do usual, marcado por uma singular visão do mundo sertanejo.

Nessa etapa da consciência pura, o Artista literário não é mais do sertão, mesmo se autoproclamando sertanejo. É antes um sertanejo que se tornou citadino, e, como cidadão do século XX, repensa o sertão de sua infância, busca-o através da arte, recorda-o incessantemente.

Desenvolvendo a sua consciência particular, o escritor de substancias sertanejas “aprende a administrar conflitos”, aprende a administrar seus paradoxos existenciais, aprende a conviver com o mundo moderno, administrando valores modernos e sertanejos com eficiência.

Guimarães Rosa não é “populista”. Sua literatura não se liga a movimentos políticos refletores dos problemas da modernidade. Mas, mesmo não refletindo ostensivamente os problemas da modernidade, seu narrador expõe indiretamente a realidade (sócio-política) de seu momento histórico, assim como expõe também a realidade do mundo capitalista do século XX já em decadência.

Se não há como “aprender a administrar conflitos” políticos, socialmente, o escritor brasileiro, da metade do século XX em diante (Guimarães Rosa e/ou todos os outros do período que dignificaram a literatura brasileira), literariamente, procurou administrar a sua realidade interiorizada – os conflitos e questionamentos internos – apoiado em sua própria independência vivencial, preservando e exercendo o seu sublime direito de livre-arbítrio. Mesmo sabendo que é difícil, em nível de realidade, solucionar “todos os problemas que envolvem o destino dos homens”, o escritor conscientizou-se de que, literariamente, seria possível equacionar e solucionar (ou não) tais problemas.

sábado, 10 de março de 2012

CONSCIÊNCIA PURA: O SERTÃO PARTICULAR DE GUIMARÃES ROSA - 4


CONSCIÊNCIA PURA: O SERTÃO PARTICULAR DE GUIMARÃES ROSA - 4

NEUZA MACHADO

O plano da consciência pura aparecerá, para os que não o entendem, como uma vontade de nada fazer, e é algo assim, porque, na verdade, a consciência já individualizada não vai fazer nada enquanto não for a sua vez de fazer algo, o seu momento de bem fazer alguma coisa (“consciência pura”: conferir Gaston Bachelard).

E foi esta consciência privilegiada que fez o escritor Guimarães Rosa mudar a face-fase de seu narrador em A hora e vez de Augusto Matraga, última narrativa do corpus de Sagarana (1946). Esta narrativa cronologicamente poderia inserir-se no momento agudo da conscientização de subdesenvolvimento e, consequentemente, transmitir as características que marcaram essa tomada de consciência, mas, felizmente, ao longo do narrado, tais influências não são detectadas. Mudando a forma de narrar, o escritor colocou em evidência seus próprios objetivos individuais de homem que alcançou um plano elevado dentro dos vários patamares que compõem o pensamento individual. Seus narradores, a partir daquele momento, deixaram de agir impulsionados pelo elan vital (arrebatamento súbito e efêmero), apropriando-se da inteligência de quem os criou e deu-lhes forma ficcional.

Os narradores roseanos (já detentores da consciência pura) assumiram a inteligência do ficcionista sertanejo, questionaram, argumentaram, refletiram sobre os acontecimentos da própria narrativa e sobre a direção que deveriam seguir, orientando os impulsos criadores que partiam do próprio escritor. Assim, Nhô Augusto, o personagem central da última narrativa do corpus de Sagarana, A Hora e vez de Augusto Matraga, pode encantar-se com as minúcias da natureza, enquanto o narrador (já citadino) poetizava ficcionalmente o sertão. O narrador, apropriando-se da função especulativa do escritor, criou um mundo diferente, um sertão diferente, embalado pelo prazer de estar ancorado numa dimensão particular, auto-reflexiva, pouco se incomodando com as opiniões externas. O narrador roseano, por meio do ficcionista do século XX, escolheu falar de um sertão muito particular, suspenso em um momento no qual o antes não contava e o que viria, em termos históricos, também não.

O ficcionista do século XX de origem sertaneja – já no patamar da consciência pura, amparado pelo livre-arbítrio – intuiu o momento da manifestação do narrador suprafísico suplantando o narrador das narrativas experientes. Esperou, enquanto se posicionava como contador de estórias sertanejas (as narrativas de Sagarana que antecedem A hora e vez de Augusto Matraga), a oportunidade de se libertar ficcionalmente das pressões do mundo circundante. No altíssimo plano da consciência particular, já não lhe importava mais o julgamento do mundo em relação à sua criatividade, e, assim, fez sucesso (ainda faz) e passou a ser reconhecido como grande escritor.

O sertão nascido do eu consciente do escritor mineiro esteve, está e estará para sempre imune às críticas depreciativas do meio social. Um espaço de substâncias interioranas, espaço aquele que sempre foi depreciado pelas elites citadinas, veio à luz, em forma de narrativa pós-moderna, sob a égide de uma consciência auto-reflexiva convencida (sem nenhuma depreciação crítica: “muito convencida”) do próprio valor, e que não se incomodou em se dizer sertaneja (ou caipira), mesmo tendo alcançado outros graus (altíssimos) no plano das exigências sociais.

quarta-feira, 7 de março de 2012

MODISMOS QUE MASSIFICAM: SERÁ QUE O BRASIL DE 2012 CONTINUA ASSIM? - 3


MODISMOS QUE MASSIFICAM: SERÁ QUE O BRASIL DE 2012 CONTINUA ASSIM? - 3

NEUZA MACHADO

“Com o passar do tempo, dera-me conta de que a fraqueza maior do Terceiro Mundo estava no plano das ideias: éramos colonizados mentalmente, por um lado, e por outro permanecíamos prisioneiros de velhas doutrinas “revolucionárias” que haviam passado de moda nos centros metropolitanos.” (Celso Furtado)

Na maioria das vezes (e porque também somos produtos de colonizadores mentais e não estamos ainda preparados para abandonarmos valores alheios), as pessoas comuns do chamado Terceiro Mundo não valorizam a inteligência, preferem seguir modismos que massificam, que transformam os subjugados em uma só massa pensante. A função da inteligência é questionar, argumentar, refletir, pensar e repensar sobre a validade da direção do impulso massificador.

A consciência pura (privilégio daqueles que sabem repensar e reavaliar as informações recebidas por intermédio dos inúmeros meios de comunicação), de acordo com Bachelard, pode assim fazer uma boa escolha, porque está no auge de sua lucidez, de seu juízo, de seu bom-senso, agenciando o livre-arbítrio. Ela seria o eu consciente racional e equilibrado, repleto de força e capacidade de escolha. Nesse estágio de lucidez, o indivíduo pode ficar em estado de vigilância, pode esperar que alguma coisa se manifeste, que surja alguma intuição ou oportunidade, pode aguardar e guardar (baú de memórias); pode vigiar, para que não entre em seu mundo interior (mundo do indivíduo consciente), qualquer conhecimento que seja nocivo.

terça-feira, 6 de março de 2012

COLONIZAÇÃO MENTAL: SERÁ QUE O BRASIL DE 2012 CONTINUA ASSIM? - 2


COLONIZAÇÃO MENTAL: SERÁ QUE O BRASIL DE 2012 CONTINUA ASSIM? - 2

NEUZA MACHADO

“Com o passar do tempo, dera-me conta de que a fraqueza maior do Terceiro Mundo estava no plano das ideias: éramos colonizados mentalmente, por um lado, e por outro permanecíamos prisioneiros de velhas doutrinas “revolucionárias” que haviam passado de moda nos centros metropolitanos.” (Celso Furtado)

Revistando a História e observando as idéias de Celso Furtado, Sérgio Buarque de Holanda e Antônio Cândido, penso que esta colonização mental surgiu a partir de 1939, no decorrer da Segunda Guerra Mundial, com o advento do fascismo, do nazismo, e, principalmente, com a elevação dos Estados Unidos em primeira potência mundial. Se o Brasil já era um “país colonizado”, historicamente mal formado, não foi difícil a “colonização mental”, a submissão às ideias externas, diferentes de sua própria realidade.

E foi a partir daí que o Brasil se industrializou e os camponeses começaram a abandonar o campo, buscando melhores condições de vida na cidade. Com isto, os centros urbanos mais visados pelos emigrantes – principalmente, os do Nordeste – se transformaram em cidades superpovoadas, redutos de miséria e degeneração. Nesse ínterim, enquanto o Brasil se foi aburguesando e se submetendo à “colonização mental”, os intelectuais (alguns) procuraram se refugiar na religião, a cultura procurou refletir os problemas do país, os artistas desenvolveram ideais políticos, enfim, a realidade brasileira passou a ser desnudada por uma minoria consciente.

"No dia em que o mundo rural se achou desagregado e começou a ceder rapidamente à invasão impiedosa do mundo das cidades, entrou também a decair (...) todo o ciclo das influências ultramarinas específicas de que foram portadores os portugueses." (Sérgio Buarque de Holanda)

"Se a forma de nossa cultura ainda permanece largamente ibérica e lusitana, deve-se atribuir-se tal fato sobretudo às insuficiências do “americanismo”, que se resume até agora, em grande parte, numa sorte de exacerbamento de manifestações estranhas, de decisões impostas de fora, exteriores à terra. O americano ainda é interiormente inexistente." (Sérgio Buarque de Holanda)


Esta desagregação do mundo rural começou no século XIX e atingiu seu ápice nos dois decênios iniciais do século XX. Assim, as reflexões de Sérgio Buarque de Holanda se ajustaram às de Antônio Cândido e Celso Furtado, quanto ao momento em que se iniciou, no Brasil, a consciência de subdesenvolvimento. É importante observar que Sérgio Buarque de Holanda já falava em “decisões impostas de fora” bem antes de Celso Furtado, se comparo as datas em que ambos raciocinaram sobre os problemas internos do Brasil.

É também esse mundo rural desagregado que passou a ser o tema dos escritores das décadas de 30 e 40. A literatura desse período, segundo Antônio Cândido, estava centralizada na “dialética do localismo e do cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos”. E é nesse período também (1946) que Guimarães Rosa publicou Sagarana, uma coletânea de contos, na qual, excetuando “A hora e vez de Augusto Matraga”, se observou o “nacionalismo literário”, ou seja, a recriação do dialeto caipira, e o “inconformismo”, em outras palavras, a rejeição a padrões preestabelecidos.

A ideia de “localismo e cosmopolitismo” na obra roseana da primeira fase se sobressai, porque o autor, a partir daquele momento, procurou valorizar um determinado espaço geográfico, mas, idealizou também, como diz Antônio Cândido, “um compromisso mais ou menos feliz de expressão com o padrão universal”.

Nas fases seguintes, a partir de A hora e vez de Augusto Matraga, espécie de narrativa-embrião de Grande Sertão: Veredas, não mais se observou o sertão roseano como um determinado local, pois o mesmo se transmudou em autêntico espaço universal.

Repensando a ENTREVISTA de Guimarães Rosa ao crítico Günter Lorenz (1965), percebe-se uma ligação fortíssima do escritor com suas origens européias. Na Entrevista, ele afirmou que uma parte de sua família, pelo sobrenome, reportava-se a uma “origem portuguesa, mas na realidade [seria] um nome suevo que na época das migrações era Guimaranes, nome que também designava a capital de um estado suevo da Lusitânia” Afirmou ainda que, pela sua origem, estava “voltado para o remoto, para o estranho”.

Se as narrativas de Sagarana, excetuando, como já foi dito, a narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, procuraram realçar o sertão mineiro (cf: “O burrinho pedrês”, “Sarapalha”, “São Marcos” e outras), as narrativas seguintes se ligaram a este aspecto remoto e estranho de suas origens. O sertão roseano, criado a partir de A hora e vez de Augusto Matraga, perdeu o aspecto de local, para atingir o universal, porque, diferente do sertão de Minas, e ligado às transmutações vivenciais de seu criador, transformou-se em produto de uma mente já citadina e individual, auto-reflexiva e especulativa. Na verdade, este sertão da segunda fase de Guimarães Rosa, não se ligava ao “localismo literário” da década de 40, e, muito menos, procurava criar uma língua diversa com o intuito de se opor a padrões preestabelecidos. A linguagem sertaneja, ou a língua que se fala [ficcionalmente] no universo roseano, tende para o universal, porque metafisicamente caracteriza um espaço ligado ao plano da eternidade e da solidão, como o próprio Guimarães Rosa admitiu na ENTREVISTA.

"Goëthe nasceu no sertão, assim como Dostoievski, Tolstoi, Flaubert, Balzac; ele era, como os outros que eu admiro, um moralista, um homem que vivia com a língua e pensava no infinito. Acho que Göethe foi, em resumo, o único grande poeta da literatura mundial que não escrevia para o dia, mas para o infinito. Era um sertanejo." (Guimarães Rosa)

"Portanto, torno a repetir: não do ponto de vista filológico e sim do metafísico, no sertão fala-se a língua de Göethe, Dostoievski e Flaubert, porque o sertão é o terreno da eternidade e da solidão, onde Inneres und Äusseres sund nicht mehr zu trennen (“O interior e o exterior já não podem ser separados”)." (Guimarães Rosa)

Nestas palavras não se observa o “conformismo” de quem fez/faz parte de uma sociedade subdesenvolvida, “conformismo” que caracterizava uma parte dos escritores do período de 1900 a 1945, porque o escritor de origem sertaneja, naquele momento, já se transformara em cidadão do mundo.

"Conheço bastante bem a literatura alemã. Por exemplo, o Simplizissimus é para mim muito importante. Amo Göethe, admiro e venero Thomas Mann, Robert Musil, Franz Kafka, a musicalidade de pensamento de Rilke, a importância monstruosa, espantosa de Freud. Todos estes autores me impressionaram e me influenciaram muito intensamente, sem dúvida. Entretanto, não sei o que fazer com autores mais jovens como Brecht. Todos eles perderam o sentido da metafísica da língua, todos eles se tornaram pregoeiros e deixaram de lado a alma, considerando-a fora de moda, em desacordo com a época e acreditando que o homem seria apenas um Wolfsburg-Mensch (“Homem de Wolfgsburg”)." (Guimarães Rosa)

O escritor de substâncias mineiras se transformou em cidadão do mundo, e teve consciência de que recebeu influências europeias. Como todos os escritores de sua geração, recebeu influências, como ele mesmo afirmou, mas em sua literatura não há a imitação consciente de padrões europeus, comportamento normal no período da noção aguda do subdesenvolvimento, segundo Antônio Cândido. Não seria correto procurar tal atitude em Guimarães Rosa. O que posso destacar, nesse sentido, estaria ligado a valores metafísicos e universais. Se houve influências que, em outros casos, induzem à imitação, tais influências se transmudaram em criatividade própria, a partir do momento em que atingiu o patamar da consciência pura.

Ainda reconsiderando as palavras de Guimarães Rosa ao crítico Lorenz com atenção, vejo que quem fez todas aquelas preleções sobre a literatura alemã não foi o sertanejo, o nativo do sertão mineiro, foi o intelectual que alcançou o repouso reflexivo, de acordo com as teorias bachelardianas (conferir Bachelard), repouso este que precedeu ao despertar de sua consciência individual.

Por minha parte, se penso em seu narrador de A hora e vez de Augusto Matraga e nos narradores das fases seguintes, vejo que, induzidos pelo ficcionista, assumiram o caminho individual que os levaria, logo a seguir, à auto-reflexão, a tal qualidade essencial exigida para se chegar ao objetivo individual, qualidade esta que caracteriza o indivíduo inteligente.

segunda-feira, 5 de março de 2012

CELSO FURTADO E AS ESTRUTURAS DO PODER MUNDIAL NOS ANOS 80: SERÁ QUE O BRASIL DE 2012 CONTINUA ASSIM? - 1


CELSO FURTADO E AS ESTRUTURAS DO PODER MUNDIAL NOS ANOS 80: SERÁ QUE O BRASIL DE 2012 CONTINUA ASSIM? - 1

NEUZA MACHADO

“O avanço político, que é o mais difícil e importante de todos que logra o homem, faz-se aprendendo a administrar conflitos. Daí que só as sociedades democráticas o realizem com segurança. Trata-se de manter a sociedade aberta, num mundo de crescente interdependência, preservando e exercendo a capacidade de auto-governo. É um problema com mais incógnitas do que equações. Mas será que existe solução para todos os problemas que envolvem o destino dos homens?” (Celso Furtado)

Em Os ares do mundo (publicado em 1991), Celso Furtado procurou reexaminar as estruturas do poder mundial (principalmente, as estruturas do poder dos Estados Unidos da América do Norte, naqueles anos bélicos) e as consequências desse domínio na questão desenvolvimento-subdesenvolvimento, questão esta que até hoje incomoda vários países subdesenvolvidos, estando longe de ser solucionada. Refletindo sobre a dependência a que estavam submetidos os países do chamado Terceiro Mundo, “presos na armadilha do subdesenvolvimento”, dominados por grandes potências mundiais, e reexaminando as substâncias ideológicas que estruturavam essas camadas de poder, Celso Furtado questionou os problemas dos países subdesenvolvidos, naquela época, incluindo o Brasil, e se perguntou, no primeiro capítulo de suas reflexões, “que rumo tomar?”

Em um país hierarquizante – nos anos finais do século XX – onde uma minoria possuía as armas para dominar os menos favorecidos socialmente, minoria esta que também se submeteu a poderes externos, foi impossível (para a maioria dos brasileiro) parar para pensar o rumo a ser seguido. Na verdade, o povo, naquele momento, foi levado caoticamente pelas engrenagens de um poder cujas bases repousavam fora de seus limites sócio-existenciais.

Repensando o início da História do Brasil, constato que esta pergunta, “que rumo tomar?”, poderia ser formulada a partir do próprio desenvolvimento histórico-social do país. O próprio Celso Furtado informou que “as lutas sociais do século XX [foram] caudatárias de ideologias concebidas nos dois séculos anteriores, particularmente no XIX”. Com pesar, o sociólogo reconheceu que essas lutas não conseguiram reconstruir as estruturas inicialmente mal elaboradas. E foi exatamente esta mal-formação social que impediu (até o final dos anos noventa) a tão desejada autonomia ao Brasil, e que ainda impede os atuais países subdesenvolvidos (em termos gerais) de se elevarem economicamente.

Observando especificamente o Brasil, um país que foi ao longo de sua história marcado politicamente por etapas conflituosas, é possível (ainda hoje, décimo segundo ano do século XXI) raciocinar a impossibilidade de aprender a administrar conflitos, incapacidade esta que o atinge continuamente, apesar dos esforços de alguns brasileiros valorosos, os quais lutam aqui mesmo, em território nacional, para que as mudanças positivas sejam realizadas (evidentemente, estou aqui aludindo a uma consciente minoria politizada).

Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, por sua vez, desnudou o modo de ser do homem brasileiro, a sua cordialidade; desnudou o caráter de quem herdou, historicamente, uma personalidade paradoxal misto de trabalho e aventura. Com ele, observo que o princípio do Brasil não favoreceu o desenvolvimento de uma aprendizagem segura, pois as condições naturais do país, naquele início, aliadas ao domínio de um povo, no qual o culto da personalidade impelia à separação ao invés da união, impediram tal aprendizagem. Assim, atrevo-me a falar da dificuldade do brasileiro de classes privilegiadas em aprender a administrar conflitos. Ainda hoje (reafirmo: início de século XXI), com os progressos já visíveis aqui em nossa Aldeia Particular, com o Brasil já galgando um patamar vitorioso, percebo esta quase impossibilidade de achar a solução para os problemas políticos/sociais que envolvem o destino da Nação Brasileira. Continuamos colonos, pior ainda, colonos mentais.

No que se relaciona à literatura, esta sempre procurou refletir esses problemas. Conscientemente ou intuitivamente os escritores brasileiros, cada qual submetido a sua linha estética, registraram as suas impressões, desenvolvendo considerações sobre a realidade que os cercava.

Antônio Cândido em Literatura e subdesenvolvimento ressaltou a idéia de Mário Vieira de Mello, sobre as duas fases que predominaram no Brasil no âmbito da literatura – a ideia de “país novo”, até 1930, e, posteriormente, de “país subdesenvolvido” –, e como os escritores de cada fase viram a realidade circundante. Desde o Descobrimento, os escritores elaboraram uma literatura exaltada e utópica, celebrando as belezas naturais e pouco se preocupando com os problemas sociais. A partir de 1930, surgiu a conscientização dos problemas e esta conscientização possibilitou uma repercussão que provocou a noção clara do subdesenvolvimento. A partir daí, arrefeceu-se a euforia inicial, a linguagem de celebração, a ideia de “terra bela - pátria grande”, e os escritores passaram a desenvolver uma ficção centralizada em uma visão pessimista, na qual afloraram a miséria e a incultura.