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segunda-feira, 4 de março de 2013

O BLOQUEIO: UM INSÓLITO CONTO DE MURILO RUBIÃO


 
O BLOQUEIO: UM INSÓLITO CONTO DE MURILO RUBIÃO

 


 
 

O BLOQUEIO

 

Murilo Rubião

 

“O seu tempo está próximo a vir,

E os seus dias não se alongarão”.

                                          Is 14,1

 

No terceiro dia em que dormia no pequeno apartamento de um edifício recém-construído, ouviu os primeiros ruídos. De normal, tinha o sono pesado e mesmo depois de despertar levava tempo para se integrar no novo dia, confundindo restos de sonho com fragmentos da realidade. Por isso não deu de imediato importância à vibração de vidros, atribuindo-a a um pesadelo. A escuridão do aposento contribuía para fortalecer essa frágil certeza. O barulho era intenso. Vinha dos pavimentos superiores e assemelhava-se aos produzidos pelas raspadeiras de assoalho. Acendeu a luz e consultou o relógio: três horas. Achou estranho. As normas do condomínio não permitiam trabalho dessa natureza em plena madrugada. Mas a máquina prosseguia na impiedosa tarefa, os sons se avolumando, e crescendo a irritação de Gérion contra a companhia imobiliária que lhe garantira ser excelente a administração do prédio. De repente emudeceram os ruídos.

 

Pegara novamente no sono e sonhou que estava sendo serrado na altura do tórax. Acordou em pânico: uma poderosa serra exercitava os seus dentes nos andares de cima, cortando material de grande resistência, que se estilhaçava ao desintegrar-se.

 

Ouvia, a espaços, explosões secas, a movimentação de uma nervosa britadeira, o martelar compassado de um pilão bate-estaca. Estariam construindo ou destruindo?

 

Do temor à curiosidade, hesitou entre verificar o que estava acontecendo ou juntar os objetos de maior valor e dar o fora antes do desabamento final. Preferiu correr o risco a voltar para sua casa, que abandonara, às pressas, por motivos de ordem familiar. Vestiu-se, olhou a rua, através da vidraça tremente, na manhã ensolarada, pensando se ainda veria outras.

 

Mal abrira a porta, chegou-lhe ao ouvido o matraquear de várias brocas e pouco depois estalos de cabos de aço se rompendo, o elevador despencando aos trambolhões pelo poço até arrebentar lá embaixo com uma violência que fez estremecer o prédio inteiro.

 

Recuou apavorado, trancando-se no apartamento, o coração a bater desordenadamente. – É o fim, pensou. – Entretanto, o silêncio quase se recompôs, ouvindo-se ao longe apenas estalidos intermitentes, o rascar irritante de metais e concreto.

 

Pela tarde, a calma retornou ao edifício, encorajando Gérion a ir ao terraço para averiguar a extensão dos estragos. Encontrou-se a céu aberto. Quatro pavimentos haviam desaparecido, como se cortados meticulosamente, limadas as pontas dos vergalhões, serradas as vigas, trituradas as lajes. Tudo reduzido a fino pó amontoado nos cantos.

 

Não via rastros das máquinas. Talvez já estivessem distantes, transferidas a outra construção, concluiu aliviado.

 

Descia tranquilo as escadas, a assoviar uma música em voga, quando sofreu o impacto da decepção: dos andares inferiores lhe chegava toda gama de ruídos que ouvira no decorrer do dia.

 

 

Ligou para a portaria. Tinha pouca esperança de receber esclarecimentos satisfatórios sobre o que estava ocorrendo. O próprio síndico atendeu-o:

 

– Obras de rotina. Pedimos-lhe desculpas, principalmente sendo o senhor nosso único inquilino. Até agora, é claro.latas?

 

– Que raio de rotina é essa de arrasar o prédio todo?

 

– Dentro de três dias estará tudo acabado – disse, desligando o aparelho.

 

– Tudo acabado. Bolas. – Encaminhou-se à minúscula cozinha, boa parte dela tomada por latas vazias. Preparou sem entusiasmo o jantar, enfarado de conservas.

 

Sobreviveria às latas? – Olhava melancólico o estoque de alimentos, feito para durar uma semana.

 

O telefone tocou. Largou o prato, intrigado com a chamada. Ninguém sabia do seu novo endereço. Inscrevera-se na Companhia Telefônica e alugara o apartamento com nome suposto. Um engano, certamente.

 

Era a mulher, a lhe aumentar o desânimo:

 

– Como me descobriu? – Ouviu uma risadinha do outro lado da linha. (A gorda devia estar comendo bombons. Tinha sempre alguns ao alcance das mãos).

 

– Por que nos abandonou, Gérion? Venha para casa. Você não viverá sem o meu dinheiro. Quem lhe arranjará emprego? (A essa altura Margarerbe já estaria lambendo os dedos lambuzados de chocolate ou limpando-os no roupão estampado de vermelho, sua cor predileta. A porca).

 

– Vá para o diabo. Você, seu dinheiro, sua gordura.

 

 

Desligara-se momentaneamente dos ruídos, imerso na desesperança.

 

Buscou no bolso um cigarro e verificou com desagrado que tinha poucos. Esquecera de fazer maior provisão de maços. Mandou o nome da mãe.

 

 

A mão pousada no fone, colocado no gancho, Gérion fez uma careta ao ouvir de novo o toque da campainha.

 

– Papai?

 

– Filhinha.

 

– Você bem poderia voltar, ler para mim aquele livro do cavalo verde.

 

A parte decorada terminara e Seatéia começava a gaguejar.

 

– Pai... A gente gostaria que viesse, mas sei que você não quer. Não venha, se aí é melhor...

 

 

A ligação foi interrompida bruscamente. De início suspeitara e logo se convenceu de que a filha fora obrigada a lhe telefonar, numa tentativa de explorá-lo emocionalmente. Àquela hora estaria apanhando por não ter obedecido à risca as instruções da mãe.

 

Nauseado lamentava o fracasso da fuga. Tornaria a partilhar do mesmo leito com a esposa, espremido, o corpo dela a ocupar dois terços da cama. O ronco, os flatos.

 

Mas não poderia deixar que fosse transferido a Seatéia o ódio que Margarerbe lhe dedicava. Recorreria a todas as formas de tortura para vingar-se dele, através da filha.

 

 

Os ruídos tinham perdido a sua força inicial. Diminuíam, cessaram por completo.

 

 

Gérion descia a escadaria indeciso quanto à necessidade do sacrifício.

 

Oito andares abaixo, a escada terminou abruptamente. Um pé solto no espaço, retrocedeu transido de medo, caindo para trás. Transpirava, as pernas tremiam.

 

Não conseguia levantar-se, pregado ao degrau.

 

Foi demorada a recuperação. Passada a vertigem, viu embaixo o terreno limpo, nem parecendo ter abrigado antes uma construção. Nenhum sinal de estacas, pedaços de ferro, tijolos, apenas o pó fino amontoado nos cantos do lote.

 

Voltou ao apartamento ainda sob o abalo do susto. Deixou-se cair no sofá. Impedido de regressar a casa, experimentou o gosto da plena solidão. Sabia do seu egoísmo, omitindo-se dos problemas futuros da filha. Talvez a estimasse pela obrigação natural que têm os pais de amar os filhos.

 

Gostara de alguém? – Desviou o curso do pensamento, fórmula cômoda de escapar à vigilância da consciência.

 

Aguardava paciente nova chamada da mulher e, ao atendê-la, ia nos seus olhos um sádico prazer. Há longo tempo vinha aguardando essa oportunidade, para revidar duro as humilhações acumuladas e vingar-se da permanente submissão a que era constrangido pelos caprichos de Margarerbe, a lhe chamar, a toda hora e na presença dos criados, de parasita, incapaz.

 

Escolhera bem os adjetivos. Não chegou a usá-los: uma corrente luminosa destruiu o fio telefônico. No ar pairou durante segundos uma poeira colorida. Fechava-se o bloqueio.

 

 

Depois de algumas horas de absoluto silêncio, ela volvia: ruidosa, mansamente, surda, suave, estridente, monocórdia, dissonante, polifônica, ritmadamente, melodiosa, quase música. Embalou-se numa valsa dançada há vários anos. Sons ásperos espantaram a imagem vinda da adolescência, logo sobreposta pela de Margarerbe, que ele mesmo espantou.

 

 

Acordou tarde da noite com um grito terrível a ressoar pelos corredores do prédio. Imobilizou-se na cama, em agônica espera: emitiria a máquina vozes humanas? – Preferiu acreditar que sonhara, pois de real só ouvia o barulho monótono de uma escavadeira a cumprir tarefas em pavimentos bem próximos do seu.

 

Tranquilizado, analisava as ocorrências dos dias anteriores, concluindo que pelo menos os ruídos vinham espaçados e não lhe feriam os nervos com o serrar de ferros e madeira. Caprichosos e irregulares, eles mudavam rapidamente de andar, desnorteando Gérion quanto aos objetivos da máquina. – Por que uma e não várias, a exercer funções diversas e autônomas, como inicialmente acreditou? – A crença na sua unidade entranhara-se nele sem aparente explicação, porém irredutível. Sim, única e múltipla na sua ação.

 

 

Os ruídos se avizinhavam. Adquiriam brandura e constância, fazendo-o acreditar que em breve encheriam o apartamento.

 

Abeirava-se o momento crucial e custava-lhe conter o impulso de ir ao encontro da máquina, que perdera muito do antigo vigor ou realizava seu trabalho com propositada morosidade, aprimorando a obra, para fruir aos poucos os instantes finais da destruição.

 

A par do desejo de enfrentá-la, descobrir os segredos que a tornavam tão poderosa, tinha medo do encontro. Enredava-se, entretanto, em seu fascínio, apurando o ouvido para captar os sons que àquela hora se agrupavam em escala cromática no corredor, enquanto na sala penetravam os primeiros focos de luz.

 

Não resistindo à expectativa, abriu a porta. Houve uma súbita ruptura na escalada dos ruídos e escutou ainda o eco dos estalidos a desaparecerem céleres pela escada. Nos cantos da parede começava a acumular-se um pó cinzento e fino.

 

Repetiu a experiência, mas a máquina persistia em se esconder, não sabendo ele se por simples pudor ou se porque ainda era cedo para mostrar-se, desnudando seu mistério.

 

No ir e vir da destruidora, as suas constantes fugas redobravam a curiosidade de Gérion, que não suportava a espera, a temer que ela tardasse em aniquilá-lo ou jamais o destruísse.

 

Pelas frinchas continuavam a entrar luzes coloridas, formando e desfazendo no ar um contínuo arco-íris: teria tempo de contemplá-la na plenitude de suas cores?

 

Cerrou a porta com a chave.

 

RUBIÃO, Murilo. “O Bloqueio”. In: O Convidado. São Paulo: Ática, 1983.