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sexta-feira, 19 de abril de 2013

CASSIANO RICARDO: MARTIM CERERÊ - TROPEL DE GIGANTES



TROPEL DE GIGANTES: MARTIM CERERÊ -
CASSIANO RICARDO

 

 

TROPEL DE GIGANTES

Cassiano Ricardo



E a vila que se fundara

por trás do muro da Serra

(a princípio eram só três)

Logo é um covil de Gigantes.

A cavaleiro do mato,

que é o sertão de Nunca Dantes.

Felpudo, trancando a Terra;

e espesso, na manhã clara.

E os Gigantes, nunca vistos,

e seus filhos numerosos,

nascidos no alto da Serra,

têm nomes tão sugestivos

que lembram caricaturas

de suas próprias figuras.

 

Quem são eles? quais seus nomes?

Os Sardinhas, pai e filho.

Os três Fernandes: André,

Domingos e Baltazar.

Botafogo, André de Leão

de juba atirada ao vento.

Outro se chama Raposo,

feroz, calçudo, briguento.

(Raposo, para entrar no mato,

assina logo um contrato

com a morte, o seu testamento.)

Manuel Preto que, de preto,

só tem o nome, dá a ideia

de ir deixando tudo preto.

Borba Gato lembra um gato

rajado de ouro, que salta

no peito de um Moribeca,

à hora certa, em pulo exato.

Fernão é o gigante louro

que, em vez de caçar o bugre,

vai é à caça da esmeralda.

Anhanguera é o Diabo Velho

carantonha verde-crua,

que tem um olho de sol

e outro, branco, como a lua.

E o Gago? e o Tumurucaca?

E o rude Pascoal Moreira

fronteiro do mato em grosso?

E o Pay Pirá? e o Caga-fogo

De sobrancelha vermelha?

 

E Domingos Jorge Velho

de colar negro ao pescoço?

E o Manco e o Jaguaretê?

E o Polaio? e o Pé de Pau?

E o Apuçá? o Bixira, e “El Tuerto”?

E o Negro, “Tuerto de um Ojo”

que irá surrar o espanhol?

 

E uns após outros, faiscantes

“nós nunca fomos vassalos!”

Formando uma nova gente,

que o mundo não tinha visto

antes e depois de Cristo,

partem, com as suas bandeiras

que são grupos aguerridos

de brancos, índios e pretos,

todos nascidos, de novo,

no sangue de um mesmo povo,

cada um valendo por três,

ou todos de uma só vez,

partem levando nas botas

um barulhão matutino

para o mais vário destino...


RICARDO, Cassiano. Martim Cererê (o Brasil dos meninos, dos poetas e dos heróis). 13.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974: 58-59.
 

quinta-feira, 18 de abril de 2013

ACESSO AO ENSINO SUPERIOR: O FILHO DO PEDREIRO VIROU DOUTOR



ACESSO AO ENSINO SUPERIOR: O FILHO DO PEDREIRO VIROU DOUTOR

 
 


 
O Brasil comemora em 2013 uma década de governo democrático e popular. No dia 15 de abril, aconteceu em Belo Horizonte um seminário para debater os avanços e desafios da educação nesses 10 anos, com a participação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da presidenta Dilma Rousseff. O Instituto Lula convidou o infografista Ilustre Bob e transformou alguns desses destaques em infográficos simples, mas com números impressionantes, e que mostram como a educação foi tratada de forma diferente nesses 10 anos. Convidamos você a conhecer e compartilhar essas informações.

O governo Lula marcou o início de uma mudança importante na maneira de tratar a educação no Brasil, ampliando e democratizando o acesso à educação em todos os níveis, uma preocupação que vem se consolidando com o governo da presidenta Dilma Rousseff. A educação deixou de ser segmentada artificialmente, de acordo com a conveniência administrativa ou fiscal, e passou a ser vista como uma unidade, da creche à pós-graduação. A educação tratada como prioridade revelou-se, por exemplo, no orçamento do MEC, que passou de R$ 33,1 bilhões em 2002, para 86,2 bilhões em 2012.

Clique aqui para ler o balanço de governo e saber mais sobre as iniciativas da educação no governo Lula.

Ensino superior

Graças ao Programa Universidade para Todos (Prouni), mais de um milhão de bolsas integrais e parciais já foram oferecidas a estudantes de baixa renda. Além disso, o Reuni ampliou para mais de 240 mil as vagas em universidades federais, o que representa mais do que o dobro das vagas existentes há 10 anos. Em 2012, outros 370 mil estudantes se beneficiaram do Fies, Programa de Financiamento Estudantil, que em 2003 tinha apenas 50 mil contratos fechados.

Ensino profissional e técnico

Lula criou 214 novas escolas federais, número maior do que o de todas as escolas já criadas na história do Brasil. Dilma prevê a criação de outras 208 até 2014. Graças a um acordo com o Sistema S (explicar o que é), já foram ofertadas mais de um milhão de vagas gratuitas desde 2009.

Ensino básico

No ensino básico, o complemento da União investido no Fundeb – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, passou de R$ 500 mil reais, em 2003, para 10,5 bilhões, em 2012, um aumento de mais de 20 vezes.

Leia também:



Outros destaques desses 10 anos de governo democrático e popular:

O orçamento do MEC passou de 33,1 bilhões de reais para 86,2 bilhões de reais (valores corrigidos)

Gasto público passa de 4,8% do PIB para 6,1% do PIB. A meta é alcançar 7% do PIB

Foram criadas 14 novas universidades, com 126 novas extensões dos campi

Duplicou número de vagas nas universidades federais

1,1 milhão de bolsas para estudantes de baixa renda nas faculdades particulares (Prouni)

6,7 milhões de universitários atualmente – eram 3,5 milhões em 2002

FIES – 25 bilhões de reais emprestados a 760 mil universitários

290 novas escolas técnicas, com 1 milhão de alunos

Pronatec – 2 milhões de alunos matriculados

Ensino básico – 116 bilhões de reais para Fundeb 2013

Evasão escolar nos primeiros anos do ensino fundamental caiu de 8,2% para 1,6

50% dos recursos do pré-sal assegurados em Lei para a Educação

Valorização do magistério, com a formação inicial e continuada de professores e a regulamentação do piso salarial


Conheça mais sobre o infografista Ilustre Bob:


Twitter: @ilustrebob

Facebook: http://www.facebook.com/ilustredesign

domingo, 14 de abril de 2013

CASSIANO RICARDO: O GIGANTE Nº 7



O GIGANTE Nº 7

Cassiano Ricardo

 
 
 Crédito da imagem para:
 

Ia Apuçá, o Gigante Surdo,

buscando outra terra, lá longe,

onde pudesse trabalhar.

“Não te dou terra, te dou ouro!”

uma montanha toda ouro

apareceu em seu lugar.

 

Mas Apuçá, o Gigante Surdo,

que já estaria caminhando

duzentas léguas sem parar

naquele jogo de onde e quando,

vai alcançar o Tosão de Ouro:

“Não te dou ouro, te dou prata!”

uma montanha toda branca

Apareceu em seu lugar.

 

Mas Apuçá, o Gigante Surdo,

Que já estaria caminhando

mais meio mundo sem parar

vai alcançar a noiva branca

“não prata, te dou esmeraldas!”

uma montanha toda verde,

apareceu em seu lugar.

Que o fez andar, sem mais parar.

 

Que não mudava mais de cor;

que ia mudando de lugar.

 

Por isso, em toda caminhada

de quem se vai pelo sertão,

seja quando, ou por onde for,

ou seja noite, ou madrugada,

há uma montanha, toda verde,

sempre mudando de lugar,

só pra o fazer caminhar.

 

Pois quem caminha vendo, ao longe,

a antiga Serra da Esperança,

que muda sempre de lugar,

como Apuçá, o Gigante Surdo,

caminha agora a vida inteira;

é surdo a todas as distâncias.

é gigante de tanto andar!

 

Afinal, o que é Esperança?

num país ainda criança,

é uma coisa bem brasileira,

é uma forma de caminhar.

 

RICARDO, Cassiano. Martim Cererê. 13. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974: 119
 

sábado, 13 de abril de 2013

DÔIA NA JANELA: ROBERTO DRUMMOND E A METAMORFOSEADA REALIDADE BRASILEIRA DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX



DÔIA NA JANELA: ROBERTO DRUMMOND E A METAMORFOSEADA REALIDADE BRASILEIRA DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX

 
 
 


DÔIA NA JANELA

Roberto Drummond

  

Dôia ficava olhando da janela. Como Dôia podia voar, puseram grades na janela, não eram grades como as das cadeias, eram pintadas de verde. Com a ponta da unha, Dôia arranhava as grades, a cada manhã, para nunca perder a conta dos dias que estava ali. Já havia 38 arranhões, como esmalte descascando na unha, nas grades verdes.

 

À noite a vista era mais bonita da janela e Dôia via as luzes da cidade. Lá longe, onde a cidade acabava, parecia haver um mar, com navios chegando. Dôia gostava de olhar o anúncio luminoso da Coca-Cola e certas noites o único consolo de Dôia era aquela garrafa enchendo um copo de Coca-Cola. Dôia se imaginava usando uma calça Lee desbotada e tomando uma Coca-Cola num barzinho ao ar livre, onde cresciam samambaias longas como os cabelos de Dôia.

 

À tarde Dôia ligava o toca-fitas com as gravações que a irmã trouxe. Eram as vozes e os barulhos de sua casa. Dôia ouvia o pigarro do pai, com o canto do sabiá ao fundo. Às vezes a mãe de Dôia cantava e os irmãos mandavam recado para Dôia. Dôia escutava os latidos da cachorra Laika e prometia ser boa para Laika quando voltasse para casa.

 

O quarto onde Dôia ficava era pintado de branco. Na cabeceira da cama penduraram um crucifixo e Dôia foi se tornando amiga daquele Jesus Cristo esquálido. Durante o dia, Dôia dormia. Logo que eram acesas as primeiras luzes da cidade, Dôia debruçava na janela. Ficava de joelhos, olhando da janela, e já estava com calos, como as beatas.

 

Quando levaram Dôia para aquele quarto, ela olhava da janela com seus olhos cor de bala de menta. Depois o irmão de Dôia teve a ideia de trazer a luneta que foi do avô. Dôia tinha uma vaga lembrança do avô, sempre de terno de linho, e falando nas estrelas. Com a luneta, Dôia olhava o céu e tinha esperança de ver um disco voador.

 

À noite, Dôia só deixava a janela quando escutava o barulho do rato que apelidou de Salameminguê. Ele era manso e Dôia alisava seu pêlo e uma noite Dôia cantou “We Sahall Overcome”* para Salameminguê ouvir. Dôia nunca dava muito pão para Salameminguê, com medo de que ele engordasse e não pudesse mais passar pela fresta por onde entrava no quarto.

 

Dôia já conhecia todos os barulhos da noite. De madrugada os trens apitavam como se passassem debaixo de sua janela. À Meia-Noite e 35 um homem espancava uma mulher numa casa debaixo de um anúncio luminoso dos pneus Firestone. Antes de receber a luneta, Dôia achava que a briga era de algum filme da “Sessão Coruja”, na televisão. Com a luneta, localizou a casa da briga e via, pela janela acesa, o homem espancar a mulher e depois se ajoelhar aos pés dela. Dôia desviava a luneta quando os dois começavam a se abraçar na cama.

 

Depois Dôia ficava esperando o avião que ia para Nova Iorque. Dôia conhecia os aviões pelo barulho que faziam e achava bom vê-los voando baixo, as janelinhas acesas parecendo brasas vermelhas. Os passageiros daqueles aviões nunca souberam o quanto Dôia os amava. Dôia só ia dormir depois que passava o satélite artificial “Pássaro Madrugador”. Antes de fechar os olhos, Dôia dava um último olhar para Sirius, a estrela.

 

Na véspera de receber alta, Dôia descobriu que amava cada coisa daquele mundo onde esteve encerrada. Dividiu um pedaço de pão com o rato Salameminguê e lhe disse, alisando sua cabeça, que ia levá-lo com ela. Dôia mudou de ideia e achou que Salameminguê devia ficar, para fazer companhia a quem ocupasse o quarto das grades verdes. E Dôia ficou olhando o anúncio luminoso da Coca-Cola, depois Dôia olhou o casal que brigava na casa debaixo do anúncio dos pneus Firestone e teve vontade de dizer aos dois: juízo, hein? Quando passou o avião para Nova Iorque, Dôia acenou e gritou boa viagem para os passageiros. Dôia ainda olhou lá longe, viu dois navios chegando, e ficou com a luneta na mão, esperando o satélite “Passaro Madrugador”.

 

Era noite de lua cheia e Dôia viu três jipes parando onde iam fazer uma praça ou uma quadra de basquete. Uns homens desceram dos jipes e Dôia os viu sumir debaixo de uma árvores. Dôia ajustou a luneta e os homens voltaram, carregando uma cruz, como as usadas na encenação da Semana Santa. Puseram a cruz no chão e Dôia os viu arrastar um homem de dentro de um jipe. O homem estava com as mãos amarradas atrás, com uma corda de bacalhau, e usava uma calça Lee desbotada e um quedes azul, sem meia. Sua blusa Dôia imaginou como sendo “Adidas”, comprada em Buenos Aires. A barba do homem de calça Lee era grande e Dôia achou-o parecido com Alain Delon. Os cabelos eram louros como os de Robert Redford.

Desataram as mãos do homem de calça Lee e o arrastaram para a cruz e três homens apontaram suas metralhadoras Ina para o homem de calça Lee desbotada. Dôia soltou um grito, que os outros internos pensaram que fosse alguém tendo um pesadelo, e o homem de calça Lee tirou o quedes azul, a calça Lee, a camisa Adidas e ficou nu, vestido apenas com uma cueca Zorba laranja. Os homens o agarraram, houve gritos abafados, depois um silêncio, com o rádio de um táxi tocando música, e Dôia começou a ouvir o barulho de martelo batendo prego. Dôia mudou de posição na janela, ajustou mais a luneta e viu os homens crucificando o homem de cueca Zorba laranja.


De manhã cedo, o médico que ia dar alta a Dôia, o dr. Garret, achou-a pálida e com olheiras. Dôia contou que não tinha dormido porque de noite crucificaram um homem e ela assistiu tudo da janela do quarto, olhando com a luneta. O dr. Garret ajeitou os óculos, como fazia quando alguma coisa o espantava, e pediu a Dôia que contasse como foi. O dr. Garret ouviu tudo, sempre ajustando os óculos, e disse:

─ Escuta, Dôia, o homem que crucificaram não se parecia com ninguém que você já tenha visto, mesmo em gravura?

─ Sim, se parecia ─ respondeu Dôia.

─ Com quem? ─ perguntou o dr. Garret.

─ Com o Alain Delon, menos nos cabelos. Os cabelos dele eram louros como os de Robert Redford...

─ Eram cabelos compridos, Dôia? ─ perguntou o dr. Garret.

─ Eram ─ respondeu Dôia.

─ Ele tinha barba, Dôia? ─ perguntou o dr. Garret.

─ Tinha ─ respondeu Dôia.

─ Agora, Dôia, me diga uma coisa ─ falou o dr. Garret com um ar misterioso ─ Quantos anos o homem parecia ter?

─ Uns 33 ─ respondeu Dôia.

─ E estava descalço e quase nu? ─ insistiu o dr. Garret.

─ Estava ─ respondeu Dôia ─ Só ficou com a cueca Zorba laranja.

─ Então, Dôia ─ disse o dr. Garret, sem conseguir conter a emoção ─ a cena que você presenciou aconteceu há muitos e muitos anos...

─ Como? ─ perguntou Dôia.

─ Isso mesmo, Dôia. Aconteceu há quase 2 mil anos ─ respondeu penalizado, o dr. Garret.

Mais tarde, quando tomava um café com um colega da clínica, o dr. Garret contava que uma sua cliente teve uma alucinação e viu um homem ser crucificado como Jesus Cristo.

─ Sabe o que estavam fazendo de noite na praça onde ela viu a crucificação? ─ perguntou o dr. Garret, ajustando os óculos ─ Estavam plantando rosas nuns canteiros...

Nos 385 dias que ainda ficou ajoelhada olhando da janela, Dôia nunca se esqueceu do Cristo de cueca Zorba laranja, parecido com Alain Delon. Ele costumava aparecer nos sonhos de Dôia transformado numa rosa loura como os cabelos de Robert Redford.


(Conferir: DRUMMOND, Roberto. A Morte de D. J. Em Paris. 1. ed. São Paulo: Ática, 1975: 21-25)

 

*[“We Sahall Overcome” = “Nós estamos chegando” ou “Nós venceremos”]

 

segunda-feira, 4 de março de 2013

O BLOQUEIO: UM INSÓLITO CONTO DE MURILO RUBIÃO


 
O BLOQUEIO: UM INSÓLITO CONTO DE MURILO RUBIÃO

 


 
 

O BLOQUEIO

 

Murilo Rubião

 

“O seu tempo está próximo a vir,

E os seus dias não se alongarão”.

                                          Is 14,1

 

No terceiro dia em que dormia no pequeno apartamento de um edifício recém-construído, ouviu os primeiros ruídos. De normal, tinha o sono pesado e mesmo depois de despertar levava tempo para se integrar no novo dia, confundindo restos de sonho com fragmentos da realidade. Por isso não deu de imediato importância à vibração de vidros, atribuindo-a a um pesadelo. A escuridão do aposento contribuía para fortalecer essa frágil certeza. O barulho era intenso. Vinha dos pavimentos superiores e assemelhava-se aos produzidos pelas raspadeiras de assoalho. Acendeu a luz e consultou o relógio: três horas. Achou estranho. As normas do condomínio não permitiam trabalho dessa natureza em plena madrugada. Mas a máquina prosseguia na impiedosa tarefa, os sons se avolumando, e crescendo a irritação de Gérion contra a companhia imobiliária que lhe garantira ser excelente a administração do prédio. De repente emudeceram os ruídos.

 

Pegara novamente no sono e sonhou que estava sendo serrado na altura do tórax. Acordou em pânico: uma poderosa serra exercitava os seus dentes nos andares de cima, cortando material de grande resistência, que se estilhaçava ao desintegrar-se.

 

Ouvia, a espaços, explosões secas, a movimentação de uma nervosa britadeira, o martelar compassado de um pilão bate-estaca. Estariam construindo ou destruindo?

 

Do temor à curiosidade, hesitou entre verificar o que estava acontecendo ou juntar os objetos de maior valor e dar o fora antes do desabamento final. Preferiu correr o risco a voltar para sua casa, que abandonara, às pressas, por motivos de ordem familiar. Vestiu-se, olhou a rua, através da vidraça tremente, na manhã ensolarada, pensando se ainda veria outras.

 

Mal abrira a porta, chegou-lhe ao ouvido o matraquear de várias brocas e pouco depois estalos de cabos de aço se rompendo, o elevador despencando aos trambolhões pelo poço até arrebentar lá embaixo com uma violência que fez estremecer o prédio inteiro.

 

Recuou apavorado, trancando-se no apartamento, o coração a bater desordenadamente. – É o fim, pensou. – Entretanto, o silêncio quase se recompôs, ouvindo-se ao longe apenas estalidos intermitentes, o rascar irritante de metais e concreto.

 

Pela tarde, a calma retornou ao edifício, encorajando Gérion a ir ao terraço para averiguar a extensão dos estragos. Encontrou-se a céu aberto. Quatro pavimentos haviam desaparecido, como se cortados meticulosamente, limadas as pontas dos vergalhões, serradas as vigas, trituradas as lajes. Tudo reduzido a fino pó amontoado nos cantos.

 

Não via rastros das máquinas. Talvez já estivessem distantes, transferidas a outra construção, concluiu aliviado.

 

Descia tranquilo as escadas, a assoviar uma música em voga, quando sofreu o impacto da decepção: dos andares inferiores lhe chegava toda gama de ruídos que ouvira no decorrer do dia.

 

 

Ligou para a portaria. Tinha pouca esperança de receber esclarecimentos satisfatórios sobre o que estava ocorrendo. O próprio síndico atendeu-o:

 

– Obras de rotina. Pedimos-lhe desculpas, principalmente sendo o senhor nosso único inquilino. Até agora, é claro.latas?

 

– Que raio de rotina é essa de arrasar o prédio todo?

 

– Dentro de três dias estará tudo acabado – disse, desligando o aparelho.

 

– Tudo acabado. Bolas. – Encaminhou-se à minúscula cozinha, boa parte dela tomada por latas vazias. Preparou sem entusiasmo o jantar, enfarado de conservas.

 

Sobreviveria às latas? – Olhava melancólico o estoque de alimentos, feito para durar uma semana.

 

O telefone tocou. Largou o prato, intrigado com a chamada. Ninguém sabia do seu novo endereço. Inscrevera-se na Companhia Telefônica e alugara o apartamento com nome suposto. Um engano, certamente.

 

Era a mulher, a lhe aumentar o desânimo:

 

– Como me descobriu? – Ouviu uma risadinha do outro lado da linha. (A gorda devia estar comendo bombons. Tinha sempre alguns ao alcance das mãos).

 

– Por que nos abandonou, Gérion? Venha para casa. Você não viverá sem o meu dinheiro. Quem lhe arranjará emprego? (A essa altura Margarerbe já estaria lambendo os dedos lambuzados de chocolate ou limpando-os no roupão estampado de vermelho, sua cor predileta. A porca).

 

– Vá para o diabo. Você, seu dinheiro, sua gordura.

 

 

Desligara-se momentaneamente dos ruídos, imerso na desesperança.

 

Buscou no bolso um cigarro e verificou com desagrado que tinha poucos. Esquecera de fazer maior provisão de maços. Mandou o nome da mãe.

 

 

A mão pousada no fone, colocado no gancho, Gérion fez uma careta ao ouvir de novo o toque da campainha.

 

– Papai?

 

– Filhinha.

 

– Você bem poderia voltar, ler para mim aquele livro do cavalo verde.

 

A parte decorada terminara e Seatéia começava a gaguejar.

 

– Pai... A gente gostaria que viesse, mas sei que você não quer. Não venha, se aí é melhor...

 

 

A ligação foi interrompida bruscamente. De início suspeitara e logo se convenceu de que a filha fora obrigada a lhe telefonar, numa tentativa de explorá-lo emocionalmente. Àquela hora estaria apanhando por não ter obedecido à risca as instruções da mãe.

 

Nauseado lamentava o fracasso da fuga. Tornaria a partilhar do mesmo leito com a esposa, espremido, o corpo dela a ocupar dois terços da cama. O ronco, os flatos.

 

Mas não poderia deixar que fosse transferido a Seatéia o ódio que Margarerbe lhe dedicava. Recorreria a todas as formas de tortura para vingar-se dele, através da filha.

 

 

Os ruídos tinham perdido a sua força inicial. Diminuíam, cessaram por completo.

 

 

Gérion descia a escadaria indeciso quanto à necessidade do sacrifício.

 

Oito andares abaixo, a escada terminou abruptamente. Um pé solto no espaço, retrocedeu transido de medo, caindo para trás. Transpirava, as pernas tremiam.

 

Não conseguia levantar-se, pregado ao degrau.

 

Foi demorada a recuperação. Passada a vertigem, viu embaixo o terreno limpo, nem parecendo ter abrigado antes uma construção. Nenhum sinal de estacas, pedaços de ferro, tijolos, apenas o pó fino amontoado nos cantos do lote.

 

Voltou ao apartamento ainda sob o abalo do susto. Deixou-se cair no sofá. Impedido de regressar a casa, experimentou o gosto da plena solidão. Sabia do seu egoísmo, omitindo-se dos problemas futuros da filha. Talvez a estimasse pela obrigação natural que têm os pais de amar os filhos.

 

Gostara de alguém? – Desviou o curso do pensamento, fórmula cômoda de escapar à vigilância da consciência.

 

Aguardava paciente nova chamada da mulher e, ao atendê-la, ia nos seus olhos um sádico prazer. Há longo tempo vinha aguardando essa oportunidade, para revidar duro as humilhações acumuladas e vingar-se da permanente submissão a que era constrangido pelos caprichos de Margarerbe, a lhe chamar, a toda hora e na presença dos criados, de parasita, incapaz.

 

Escolhera bem os adjetivos. Não chegou a usá-los: uma corrente luminosa destruiu o fio telefônico. No ar pairou durante segundos uma poeira colorida. Fechava-se o bloqueio.

 

 

Depois de algumas horas de absoluto silêncio, ela volvia: ruidosa, mansamente, surda, suave, estridente, monocórdia, dissonante, polifônica, ritmadamente, melodiosa, quase música. Embalou-se numa valsa dançada há vários anos. Sons ásperos espantaram a imagem vinda da adolescência, logo sobreposta pela de Margarerbe, que ele mesmo espantou.

 

 

Acordou tarde da noite com um grito terrível a ressoar pelos corredores do prédio. Imobilizou-se na cama, em agônica espera: emitiria a máquina vozes humanas? – Preferiu acreditar que sonhara, pois de real só ouvia o barulho monótono de uma escavadeira a cumprir tarefas em pavimentos bem próximos do seu.

 

Tranquilizado, analisava as ocorrências dos dias anteriores, concluindo que pelo menos os ruídos vinham espaçados e não lhe feriam os nervos com o serrar de ferros e madeira. Caprichosos e irregulares, eles mudavam rapidamente de andar, desnorteando Gérion quanto aos objetivos da máquina. – Por que uma e não várias, a exercer funções diversas e autônomas, como inicialmente acreditou? – A crença na sua unidade entranhara-se nele sem aparente explicação, porém irredutível. Sim, única e múltipla na sua ação.

 

 

Os ruídos se avizinhavam. Adquiriam brandura e constância, fazendo-o acreditar que em breve encheriam o apartamento.

 

Abeirava-se o momento crucial e custava-lhe conter o impulso de ir ao encontro da máquina, que perdera muito do antigo vigor ou realizava seu trabalho com propositada morosidade, aprimorando a obra, para fruir aos poucos os instantes finais da destruição.

 

A par do desejo de enfrentá-la, descobrir os segredos que a tornavam tão poderosa, tinha medo do encontro. Enredava-se, entretanto, em seu fascínio, apurando o ouvido para captar os sons que àquela hora se agrupavam em escala cromática no corredor, enquanto na sala penetravam os primeiros focos de luz.

 

Não resistindo à expectativa, abriu a porta. Houve uma súbita ruptura na escalada dos ruídos e escutou ainda o eco dos estalidos a desaparecerem céleres pela escada. Nos cantos da parede começava a acumular-se um pó cinzento e fino.

 

Repetiu a experiência, mas a máquina persistia em se esconder, não sabendo ele se por simples pudor ou se porque ainda era cedo para mostrar-se, desnudando seu mistério.

 

No ir e vir da destruidora, as suas constantes fugas redobravam a curiosidade de Gérion, que não suportava a espera, a temer que ela tardasse em aniquilá-lo ou jamais o destruísse.

 

Pelas frinchas continuavam a entrar luzes coloridas, formando e desfazendo no ar um contínuo arco-íris: teria tempo de contemplá-la na plenitude de suas cores?

 

Cerrou a porta com a chave.

 

RUBIÃO, Murilo. “O Bloqueio”. In: O Convidado. São Paulo: Ática, 1983.