O BLOQUEIO: UM INSÓLITO CONTO DE MURILO RUBIÃO
O BLOQUEIO
Murilo Rubião
“O seu tempo está próximo a vir,
E os seus dias não se alongarão”.
Is 14,1
No terceiro dia em que dormia no
pequeno apartamento de um edifício recém-construído, ouviu os primeiros ruídos.
De normal, tinha o sono pesado e mesmo depois de despertar levava tempo para se
integrar no novo dia, confundindo restos de sonho com fragmentos da realidade.
Por isso não deu de imediato importância à vibração de vidros, atribuindo-a a
um pesadelo. A escuridão do aposento contribuía para fortalecer essa frágil
certeza. O barulho era intenso. Vinha dos pavimentos superiores e
assemelhava-se aos produzidos pelas raspadeiras de assoalho. Acendeu a luz e
consultou o relógio: três horas. Achou estranho. As normas do condomínio não
permitiam trabalho dessa natureza em plena madrugada. Mas a máquina prosseguia
na impiedosa tarefa, os sons se avolumando, e crescendo a irritação de Gérion
contra a companhia imobiliária que lhe garantira ser excelente a administração
do prédio. De repente emudeceram os ruídos.
Pegara novamente no sono e sonhou
que estava sendo serrado na altura do tórax. Acordou em pânico: uma poderosa
serra exercitava os seus dentes nos andares de cima, cortando material de
grande resistência, que se estilhaçava ao desintegrar-se.
Ouvia, a espaços, explosões
secas, a movimentação de uma nervosa britadeira, o martelar compassado de um
pilão bate-estaca. Estariam construindo ou destruindo?
Do temor à curiosidade, hesitou
entre verificar o que estava acontecendo ou juntar os objetos de maior valor e
dar o fora antes do desabamento final. Preferiu correr o risco a voltar para
sua casa, que abandonara, às pressas, por motivos de ordem familiar. Vestiu-se,
olhou a rua, através da vidraça tremente, na manhã ensolarada, pensando se ainda
veria outras.
Mal abrira a porta, chegou-lhe ao
ouvido o matraquear de várias brocas e pouco depois estalos de cabos de aço se
rompendo, o elevador despencando aos trambolhões pelo poço até arrebentar lá embaixo
com uma violência que fez estremecer o prédio inteiro.
Recuou apavorado, trancando-se no
apartamento, o coração a bater desordenadamente. – É o fim, pensou. –
Entretanto, o silêncio quase se recompôs, ouvindo-se ao longe apenas estalidos
intermitentes, o rascar irritante de metais e concreto.
Pela tarde, a calma retornou ao
edifício, encorajando Gérion a ir ao terraço para averiguar a extensão dos
estragos. Encontrou-se a céu aberto. Quatro pavimentos haviam desaparecido,
como se cortados meticulosamente, limadas as pontas dos vergalhões, serradas as
vigas, trituradas as lajes. Tudo reduzido a fino pó amontoado nos cantos.
Não via rastros das máquinas.
Talvez já estivessem distantes, transferidas a outra construção, concluiu
aliviado.
Descia tranquilo as escadas, a
assoviar uma música em voga, quando sofreu o impacto da decepção: dos andares
inferiores lhe chegava toda gama de ruídos que ouvira no decorrer do dia.
Ligou para a portaria. Tinha
pouca esperança de receber esclarecimentos satisfatórios sobre o que estava
ocorrendo. O próprio síndico atendeu-o:
– Obras de rotina. Pedimos-lhe
desculpas, principalmente sendo o senhor nosso único inquilino. Até agora, é
claro.latas?
– Que raio de rotina é essa de
arrasar o prédio todo?
– Dentro de três dias estará tudo
acabado – disse, desligando o aparelho.
– Tudo acabado. Bolas. –
Encaminhou-se à minúscula cozinha, boa parte dela tomada por latas vazias.
Preparou sem entusiasmo o jantar, enfarado de conservas.
Sobreviveria às latas? – Olhava
melancólico o estoque de alimentos, feito para durar uma semana.
O telefone tocou. Largou o prato,
intrigado com a chamada. Ninguém sabia do seu novo endereço. Inscrevera-se na
Companhia Telefônica e alugara o apartamento com nome suposto. Um engano,
certamente.
Era a mulher, a lhe aumentar o
desânimo:
– Como me descobriu? – Ouviu uma
risadinha do outro lado da linha. (A gorda devia estar comendo bombons. Tinha
sempre alguns ao alcance das mãos).
– Por que nos abandonou, Gérion?
Venha para casa. Você não viverá sem o meu dinheiro. Quem lhe arranjará emprego?
(A essa altura Margarerbe já estaria lambendo os dedos lambuzados de chocolate
ou limpando-os no roupão estampado de vermelho, sua cor predileta. A porca).
– Vá para o diabo. Você, seu
dinheiro, sua gordura.
Desligara-se momentaneamente dos
ruídos, imerso na desesperança.
Buscou no bolso um cigarro e
verificou com desagrado que tinha poucos. Esquecera de fazer maior provisão de
maços. Mandou o nome da mãe.
A mão pousada no fone, colocado
no gancho, Gérion fez uma careta ao ouvir de novo o toque da campainha.
– Papai?
– Filhinha.
– Você bem poderia voltar, ler
para mim aquele livro do cavalo verde.
A parte decorada terminara e
Seatéia começava a gaguejar.
– Pai... A gente gostaria que
viesse, mas sei que você não quer. Não venha, se aí é melhor...
A ligação foi interrompida
bruscamente. De início suspeitara e logo se convenceu de que a filha fora
obrigada a lhe telefonar, numa tentativa de explorá-lo emocionalmente. Àquela
hora estaria apanhando por não ter obedecido à risca as instruções da mãe.
Nauseado lamentava o fracasso da
fuga. Tornaria a partilhar do mesmo leito com a esposa, espremido, o corpo dela
a ocupar dois terços da cama. O ronco, os flatos.
Mas não poderia deixar que fosse
transferido a Seatéia o ódio que Margarerbe lhe dedicava. Recorreria a todas as
formas de tortura para vingar-se dele, através da filha.
Os ruídos tinham perdido a sua
força inicial. Diminuíam, cessaram por completo.
Gérion descia a escadaria indeciso
quanto à necessidade do sacrifício.
Oito andares abaixo, a escada
terminou abruptamente. Um pé solto no espaço, retrocedeu transido de medo,
caindo para trás. Transpirava, as pernas tremiam.
Não conseguia levantar-se,
pregado ao degrau.
Foi demorada a recuperação. Passada
a vertigem, viu embaixo o terreno limpo, nem parecendo ter abrigado antes uma
construção. Nenhum sinal de estacas, pedaços de ferro, tijolos, apenas o pó
fino amontoado nos cantos do lote.
Voltou ao apartamento ainda sob o
abalo do susto. Deixou-se cair no sofá. Impedido de regressar a casa,
experimentou o gosto da plena solidão. Sabia do seu egoísmo, omitindo-se dos
problemas futuros da filha. Talvez a estimasse pela obrigação natural que têm
os pais de amar os filhos.
Gostara de alguém? – Desviou o
curso do pensamento, fórmula cômoda de escapar à vigilância da consciência.
Aguardava paciente nova chamada
da mulher e, ao atendê-la, ia nos seus olhos um sádico prazer. Há longo tempo
vinha aguardando essa oportunidade, para revidar duro as humilhações acumuladas
e vingar-se da permanente submissão a que era constrangido pelos caprichos de
Margarerbe, a lhe chamar, a toda hora e na presença dos criados, de parasita,
incapaz.
Escolhera bem os adjetivos. Não chegou
a usá-los: uma corrente luminosa destruiu o fio telefônico. No ar pairou
durante segundos uma poeira colorida. Fechava-se o bloqueio.
Depois de algumas horas de
absoluto silêncio, ela volvia: ruidosa, mansamente, surda, suave, estridente,
monocórdia, dissonante, polifônica, ritmadamente, melodiosa, quase música. Embalou-se
numa valsa dançada há vários anos. Sons ásperos espantaram a imagem vinda da
adolescência, logo sobreposta pela de Margarerbe, que ele mesmo espantou.
Acordou tarde da noite com um
grito terrível a ressoar pelos corredores do prédio. Imobilizou-se na cama, em
agônica espera: emitiria a máquina vozes humanas? – Preferiu acreditar que
sonhara, pois de real só ouvia o barulho monótono de uma escavadeira a cumprir
tarefas em pavimentos bem próximos do seu.
Tranquilizado, analisava as
ocorrências dos dias anteriores, concluindo que pelo menos os ruídos vinham
espaçados e não lhe feriam os nervos com o serrar de ferros e madeira. Caprichosos
e irregulares, eles mudavam rapidamente de andar, desnorteando Gérion quanto
aos objetivos da máquina. – Por que uma e não várias, a exercer funções
diversas e autônomas, como inicialmente acreditou? – A crença na sua unidade
entranhara-se nele sem aparente explicação, porém irredutível. Sim, única e
múltipla na sua ação.
Os ruídos se avizinhavam. Adquiriam
brandura e constância, fazendo-o acreditar que em breve encheriam o
apartamento.
Abeirava-se o momento crucial e
custava-lhe conter o impulso de ir ao encontro da máquina, que perdera muito do
antigo vigor ou realizava seu trabalho com propositada morosidade, aprimorando
a obra, para fruir aos poucos os instantes finais da destruição.
A par do desejo de enfrentá-la,
descobrir os segredos que a tornavam tão poderosa, tinha medo do encontro. Enredava-se,
entretanto, em seu fascínio, apurando o ouvido para captar os sons que àquela
hora se agrupavam em escala cromática no corredor, enquanto na sala penetravam
os primeiros focos de luz.
Não resistindo à expectativa,
abriu a porta. Houve uma súbita ruptura na escalada dos ruídos e escutou ainda
o eco dos estalidos a desaparecerem céleres pela escada. Nos cantos da parede
começava a acumular-se um pó cinzento e fino.
Repetiu a experiência, mas a
máquina persistia em se esconder, não sabendo ele se por simples pudor ou se
porque ainda era cedo para mostrar-se, desnudando seu mistério.
No ir e vir da destruidora, as
suas constantes fugas redobravam a curiosidade de Gérion, que não suportava a
espera, a temer que ela tardasse em aniquilá-lo ou jamais o destruísse.
Pelas frinchas continuavam a
entrar luzes coloridas, formando e desfazendo no ar um contínuo arco-íris:
teria tempo de contemplá-la na plenitude de suas cores?
Cerrou a porta com a chave.
RUBIÃO, Murilo. “O Bloqueio”. In:
O Convidado. São Paulo: Ática, 1983.