DÔIA NA JANELA: ROBERTO DRUMMOND E A
METAMORFOSEADA REALIDADE BRASILEIRA DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX
DÔIA NA JANELA
Roberto Drummond
Dôia
ficava olhando da janela. Como Dôia podia voar, puseram grades na janela, não
eram grades como as das cadeias, eram pintadas de verde. Com a ponta da unha,
Dôia arranhava as grades, a cada manhã, para nunca perder a conta dos dias que
estava ali. Já havia 38 arranhões, como esmalte descascando na unha, nas grades
verdes.
À
noite a vista era mais bonita da janela e Dôia via as luzes da cidade. Lá
longe, onde a cidade acabava, parecia haver um mar, com navios chegando. Dôia
gostava de olhar o anúncio luminoso da Coca-Cola e certas noites o único
consolo de Dôia era aquela garrafa enchendo um copo de Coca-Cola. Dôia se
imaginava usando uma calça Lee desbotada e tomando uma Coca-Cola num barzinho
ao ar livre, onde cresciam samambaias longas como os cabelos de Dôia.
À
tarde Dôia ligava o toca-fitas com as gravações que a irmã trouxe. Eram as
vozes e os barulhos de sua casa. Dôia ouvia o pigarro do pai, com o canto do sabiá
ao fundo. Às vezes a mãe de Dôia cantava e os irmãos mandavam recado para Dôia.
Dôia escutava os latidos da cachorra Laika e prometia ser boa para Laika quando
voltasse para casa.
O
quarto onde Dôia ficava era pintado de branco. Na cabeceira da cama penduraram
um crucifixo e Dôia foi se tornando amiga daquele Jesus Cristo esquálido.
Durante o dia, Dôia dormia. Logo que eram acesas as primeiras luzes da cidade,
Dôia debruçava na janela. Ficava de joelhos, olhando da janela, e já estava com
calos, como as beatas.
Quando
levaram Dôia para aquele quarto, ela olhava da janela com seus olhos cor de
bala de menta. Depois o irmão de Dôia teve a ideia de trazer a luneta que foi
do avô. Dôia tinha uma vaga lembrança do avô, sempre de terno de linho, e
falando nas estrelas. Com a luneta, Dôia olhava o céu e tinha esperança de ver
um disco voador.
À
noite, Dôia só deixava a janela quando escutava o barulho do rato que apelidou
de Salameminguê. Ele era manso e Dôia alisava seu pêlo e uma noite Dôia cantou
“We Sahall Overcome”* para Salameminguê ouvir. Dôia nunca dava muito pão para
Salameminguê, com medo de que ele engordasse e não pudesse mais passar pela
fresta por onde entrava no quarto.
Dôia
já conhecia todos os barulhos da noite. De madrugada os trens apitavam como se
passassem debaixo de sua janela. À Meia-Noite e 35 um homem espancava uma
mulher numa casa debaixo de um anúncio luminoso dos pneus Firestone. Antes de
receber a luneta, Dôia achava que a briga era de algum filme da “Sessão
Coruja”, na televisão. Com a luneta, localizou a casa da briga e via, pela
janela acesa, o homem espancar a mulher e depois se ajoelhar aos pés dela. Dôia
desviava a luneta quando os dois começavam a se abraçar na cama.
Depois
Dôia ficava esperando o avião que ia para Nova Iorque. Dôia conhecia os aviões
pelo barulho que faziam e achava bom vê-los voando baixo, as janelinhas acesas
parecendo brasas vermelhas. Os passageiros daqueles aviões nunca souberam o
quanto Dôia os amava. Dôia só ia dormir depois que passava o satélite artificial
“Pássaro Madrugador”. Antes de fechar os olhos, Dôia dava um último olhar para
Sirius, a estrela.
Na
véspera de receber alta, Dôia descobriu que amava cada coisa daquele mundo onde
esteve encerrada. Dividiu um pedaço de pão com o rato Salameminguê e lhe disse,
alisando sua cabeça, que ia levá-lo com ela. Dôia mudou de ideia e achou que
Salameminguê devia ficar, para fazer companhia a quem ocupasse o quarto das
grades verdes. E Dôia ficou olhando o anúncio luminoso da Coca-Cola, depois
Dôia olhou o casal que brigava na casa debaixo do anúncio dos pneus Firestone e
teve vontade de dizer aos dois: juízo, hein? Quando passou o avião para Nova
Iorque, Dôia acenou e gritou boa viagem para os passageiros. Dôia ainda olhou
lá longe, viu dois navios chegando, e ficou com a luneta na mão, esperando o
satélite “Passaro Madrugador”.
Era
noite de lua cheia e Dôia viu três jipes parando onde iam fazer uma praça ou
uma quadra de basquete. Uns homens desceram dos jipes e Dôia os viu sumir
debaixo de uma árvores. Dôia ajustou a luneta e os homens voltaram, carregando
uma cruz, como as usadas na encenação da Semana Santa. Puseram a cruz no chão e
Dôia os viu arrastar um homem de dentro de um jipe. O homem estava com as mãos
amarradas atrás, com uma corda de bacalhau, e usava uma calça Lee desbotada e
um quedes azul, sem meia. Sua blusa Dôia imaginou como sendo “Adidas”, comprada
em Buenos Aires. A barba do homem de calça Lee era grande e Dôia achou-o
parecido com Alain Delon. Os cabelos eram louros como os de Robert Redford.
Desataram
as mãos do homem de calça Lee e o arrastaram para a cruz e três homens
apontaram suas metralhadoras Ina para o homem de calça Lee desbotada. Dôia
soltou um grito, que os outros internos pensaram que fosse alguém tendo um
pesadelo, e o homem de calça Lee tirou o quedes azul, a calça Lee, a camisa
Adidas e ficou nu, vestido apenas com uma cueca Zorba laranja. Os homens o
agarraram, houve gritos abafados, depois um silêncio, com o rádio de um táxi
tocando música, e Dôia começou a ouvir o barulho de martelo batendo prego. Dôia
mudou de posição na janela, ajustou mais a luneta e viu os homens crucificando
o homem de cueca Zorba laranja.
De
manhã cedo, o médico que ia dar alta a Dôia, o dr. Garret, achou-a pálida e com
olheiras. Dôia contou que não tinha dormido porque de noite crucificaram um
homem e ela assistiu tudo da janela do quarto, olhando com a luneta. O dr.
Garret ajeitou os óculos, como fazia quando alguma coisa o espantava, e pediu a
Dôia que contasse como foi. O dr. Garret ouviu tudo, sempre ajustando os
óculos, e disse:
─
Escuta, Dôia, o homem que crucificaram não se parecia com ninguém que você já
tenha visto, mesmo em gravura?
─
Sim, se parecia ─ respondeu Dôia.
─
Com quem? ─ perguntou o dr. Garret.
─
Com o Alain Delon, menos nos cabelos. Os cabelos dele eram louros como os de
Robert Redford...
─
Eram cabelos compridos, Dôia? ─ perguntou o dr. Garret.
─
Eram ─ respondeu Dôia.
─
Ele tinha barba, Dôia? ─ perguntou o dr. Garret.
─
Tinha ─ respondeu Dôia.
─
Agora, Dôia, me diga uma coisa ─ falou o dr. Garret com um ar misterioso ─
Quantos anos o homem parecia ter?
─
Uns 33 ─ respondeu Dôia.
─
E estava descalço e quase nu? ─ insistiu o dr. Garret.
─
Estava ─ respondeu Dôia ─ Só ficou com a cueca Zorba laranja.
─
Então, Dôia ─ disse o dr. Garret, sem conseguir conter a emoção ─ a cena que
você presenciou aconteceu há muitos e muitos anos...
─
Como? ─ perguntou Dôia.
─
Isso mesmo, Dôia. Aconteceu há quase 2 mil anos ─ respondeu penalizado, o dr.
Garret.
Mais
tarde, quando tomava um café com um colega da clínica, o dr. Garret contava que
uma sua cliente teve uma alucinação e viu um homem ser crucificado como Jesus
Cristo.
─
Sabe o que estavam fazendo de noite na praça onde ela viu a crucificação? ─
perguntou o dr. Garret, ajustando os óculos ─ Estavam plantando rosas nuns
canteiros...
Nos
385 dias que ainda ficou ajoelhada olhando da janela, Dôia nunca se esqueceu do
Cristo de cueca Zorba laranja, parecido com Alain Delon. Ele costumava aparecer
nos sonhos de Dôia transformado numa rosa loura como os cabelos de Robert
Redford.
(Conferir:
DRUMMOND, Roberto. A Morte de D. J. Em
Paris. 1. ed. São Paulo: Ática, 1975: 21-25)
*[“We
Sahall Overcome” = “Nós estamos chegando” ou “Nós venceremos”]