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sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

AO PRESIDENTE LULA, TODO O MEU CARINHO E RESPEITO


AO PRESIDENTE LULA, TODO O MEU CARINHO E RESPEITO

NEUZA MACHADO


(Fotógrafo: Ricardo Stuckert)


Acompanho a trajetória política do Presidente Lula desde a Greve dos Metalúrgicos do ABC Paulista, em 1980. Naquela época, estávamos vivendo os últimos anos da Ditadura Militar e o inflamado discurso de Lula Operário foi como uma mensagem recebida diretamente dos céus, impulsionando-nos a aproveitar aquele momento de arrefecimento da opressão para dar início ao processo de mudança de uma realidade, para transformá-la naquilo que nossas esperanças mais remotas nunca haviam ousado desejar.

Seu início de vida pública, assinalado por uma prisão injusta, marcou-me profundamente. Na minha pouca experiência política, na época, não conseguia entender o que aquele homem havia feito de errado, posto que ele nem sequer atacava diretamente o governo, apenas pedia melhores condições de salários para os trabalhadores. A minha interna insatisfação com a situação social vigente, que, até então, estava adormecida, sufocada pelos múltiplos deveres de esposa, mãe e estudante universitária, foi de repente despertada pelas vigorosas palavras daquele trabalhador rústico e barbudo. Com sábias, simples e pungentes palavras o Operário do ABC Paulista convocava o povo para dar início às transformações sócio-econômicas que fariam o Brasil sair de uma condição subserviente para uma posição autônoma perante os países mais ricos.

Naquela época, eu estava cursando a Faculdade de Letras, na Avenida Chile, no Rio de Janeiro. Mesmo na condição de estudante universitária, graças às minhas obrigações familiares — já casada e com três filhos para criar —, não pude desfrutar do direito de lutar pela liberdade político-social de meu país. Aliás, o meu jovem marido, de família mineira com hábitos arraigados, impôs-me uma condição: para que eu continuasse recebendo seu apoio, a favor da concretização do meu sonho de me formar numa Faculdade Federal (para a qual já havia passado por mérito, tendo disputado com muitos uma das poucas vagas oferecidas), precisava me afastar dos grupos que promoviam a revolução. Entretanto, independente das exigências matrimoniais, em meu íntimo, estava satisfeita com aquelas manifestações revolucionárias. Influenciada positivamente pelo novo discurso revolucionário, por meio de leituras, envolvi-me teoricamente com as concepções marxistas. Tornei-me simpatizante daqueles que lutavam para extirpar do Brasil os grilhões da pobreza (e eram muitos os esfomeados, uma infinidade de pobres-miseráveis em toda a extensão do território brasileiro).

Lula, entre esses oradores-revolucionários, foi o que mais me marcou. Desde então, as suas palavras contra a miserável condição de vida em que a maior parte da população brasileira vivia calaram profundamente em meu coração. Era essa a realidade que mais se sobressaía aos olhos das pessoas com um mínimo de sensibilidade para percebê-la.

Depois do término da Ditadura, o Caos continuou...

Alguns Governantes de Direita (sem comentários!).

Luís Inácio se candidatando a Presidente do Brasil e “perdendo” (sem comentários!).

Eu, como eleitora de Lula, terrivelmente frustrada (sem comentários!).

A fome de milhões e milhões de brasileiros aumentando cada vez mais no Brasil.

Os ricos em suas torres de marfim e ouro rindo das pretensões do candidato popular (sem comentários!).

Início do Terceiro Milênio com as Torres Gêmeas da América do Norte sendo destruídas.

Início de Terceiro Milênio anunciando timidamente uma terrível recessão mundial.

Início do Terceiro Milênio promovendo mais uma disputa presidencial (depois de oito anos de governo do FHC).

Início do Terceiro Milênio e Lula se candidatando mais uma vez ao posto de Presidente da República (e a minoria rica da torre de marfim e ouro, presunçosamente culta, rindo de sua pretensão; e o Povão sempre acreditando em sua vitória).

Início de Terceiro Milênio anunciando (repito) ainda timidamente uma provável recessão mundial e os Caciques da Direita e os Banqueiros Particulares deixando o Lula ganhar as eleições (Algo assim: “Vamos deixar a bomba explodir nas mãos do operário pretensioso!”).

O nosso Grande Lula recebendo o “presente de grego” das mãos do FHC (sem comentários!).

O nosso Grande Lula sendo criticado por ter pouco estudo por alguns brasileiros pretensamente letrados.

E o nosso Presidente Lula vencendo todos os problemas (Ó Graça Maravilhosa!).

A Oposição querendo recuperar o trono (depois da Casa Grande Arrumada!).

O Povão Brasileiro aprendendo a se impor como eleitores (mas, infelizmente, ainda há o chamado voto de cabresto em alguns Rincões do Brasil; infelizmente, há brasileiros que não sabem ler as linhas e entrelinhas dos jornais e revistas partidários da Direita).

E o nosso Grande Lula ganhando as eleições pela segunda vez (Ó Graça Maravilhosa!).

Tendo de provar todos os dias a sua competência...

Em oito anos de governo, impedido de levar (ou mostrar) os próprios filhos para um banho de piscina no Palácio de Brasília...

Impedido de ver os filhos brilhando ao seu lado nas colunas dos jornais (os filhos dele não foram dignificados publicamente; nos oito anos de governo, os jornalistas não tiveram a bondade de obsequiar com palavras gentis os filhos do Presidente Lula; quando aparecia alguma nota... nem é de bom tom comentar!).

Houve algumas falhas no Governo de Lula? Sim! (E todas exaustivamente relembradas pelos jornalistas opositores). Mas nada que se compare com as falhas anteriores de governantes anteriores!

O que houve, nesses oito anos, foram ações e projetos voltados para transformar a vida do Povo Brasileiro, incluindo os 13% que não gostam dele.

Nunca, neste nosso Brasil, o Povo foi tão amado e respeitado por um Presidente!

Nunca, neste nosso Brasil, o rico ganhou tanto dinheiro com as decisões políticas do Presidente Luís Inácio (A minoria rica do Brasil, com raras exceções, não gosta do Presidente Operário. Sabem porquê? Por que ele só fala a língua do Povo e não sabe falar em inglês).

E o Presidente Operário teve de enfrentar, nesses oito anos de Glorioso Mandato, uma série de obstáculos e ofensas patrocinados, na maior parte das vezes, pela minoritária elite brasileira (preconceituosa):

PRECONCEITO SOCIALPRECONCEITO LINGUÍSTICO

MALEDICÊNCIADESCASOCRÍTICAS DESCABIDAS

DESCRÉDITO

XINGAMENTOS OSTENSIVOS E PÚBLICOS

COBRANÇAS INDEVIDAS

RISOS DEPRECIATIVOS

VAIAS ORQUESTRADAS

E MUITO MAIS...

Mas, teve a glória de ser reconhecido fora do Brasil e de ter sido amado por mais da metade do Povo Brasileiro.

Teve a glória de dignificar a posição do Brasil, que passou de país de Terceiro Mundo para país em franco desenvolvimento, ao lado da Rússia, da Índia e da China.

Teve a glória de terminar o seu mandato mantendo o dinamismo e a vontade de acertar dos primeiros meses do primeiro mandato, sempre enfrentando com coragem os problemas, por mais difíceis que fossem.

Agora, no final do Mandato Glorioso, alguns Banqueiros, Jornalistas e Políticos estão usufruindo as conquistas de Lula, e passaram a elogiar a sua forma de governar, sua força, personalidade e fama que, com mérito, recebeu da opinião pública estrangeira e do Povão Brasileiro.

Que Deus o abençoe, Presidente Lula!

E que proteja também a Presidente Dilma!

Para Você, meu Presidente!, muitas felicidades em 2011 e nos anos vindouros também!

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

AS MENINAS DE LYGIA FAGUNDES TELLES - AS SINALIZADORAS DE UM NOVO TEMPO - 3

AS MENINAS DE LYGIA FAGUNDES TELLES - AS SINALIZADORAS DE UM NOVO TEMPO - 3

NEUZA MACHADO

Logo, nas primeiras sequências da narrativa As Meninas, o narrador(a) de Lygia Fagundes Telles, pelo ponto de vista da personagem Lorena, nos mostra as atividades políticas de Lião. Todos os seus amigos, componentes do aparelho, estão presos ou desaparecidos: Miguel, Maurício, Silvinha da Flauta, Gigi, Japona e outros. Lião (filha de pai estrangeiro e mãe baiana, de temperamento forte e agitado) simboliza as mulheres-guerrilheiras da época da ditadura, realçadas nos tablóides sensacionalistas (os jornais que comungavam com as idéias da Ditadura), os quais as mostravam como delinquentes. Lião, por este ponto de vista é uma personagem verossímil, produto da realidade sócio-substancial daquele momento da História do Brasil.

Quanto a Lorena, esta faz o gênero da moça bem comportada, sem vícios, mas, mesmo assim, é oriunda de família rica e complicada (família tradicional empobrecida), o que caracteriza a quebra da estrutura familiar (perda de identidade, perda do nome familiar), registrada nos anos de pós-guerra. Pela minha exclusiva perspectiva teórico-interpretativa, Lorena, enquanto personagem-narradora, seria o duplo mais assemelhado ao(à) narrador(a) central, o qual poucas vezes se faz presente ao longo da narrativa. Lorena é uma personagem que reproduz uma outra face daquele momento: a mudança de comportamento das jovens bem nascidas, mudança induzida e administrada pelos novos valores que se propagavam/propagaram inexoravelmente a partir dos anos de 1960.

A mais desajustada é a personagem Ana Clara: de origem humilde, sempre mentindo sobre seu passado e sempre dopada (um prenúncio do mal que viria a seguir, destruindo a maior parte da juventude brasileira). Ela deseja se casar para melhorar de vida, mas seu noivo rico só se casará com uma virgem. Nesta personagem, nitidamente apreendida como uma importante criação ficcional, provinda do imaginário-em-aberto dos pensamentos transmutativos (o que Bachelard denomina como “repouso ativado”), a escritora dos anos que abalaram a sociedade patriarcal brasileira concentra sua crítica aos preconceitos de uma sociedade historicamente machista, que, em pleno momento de liberação feminina, exigia ainda a virgindade da mulher como valor fundamental para a realização do casamento.

Em torno destas três personagens, Lygia procura tecer os acontecimentos da narrativa, mas, em verdade, esses acontecimentos são sustentados pelo interior em ebulição de quem as criou. Bachelard, em seu livro A dialética da duração, nos fala do repouso fervilhante, que antecede o momento de ascensão ao cogito(3) da consciência pura. Assim, se penso conscientemente nas páginas iniciais de As meninas, entendo que a autora estava, naquele momento de incomum inspiração ficcional, ainda, recebendo as mensagens do pensamento questionador, detonadas em mil fragmentos (cogito(2)). Assim, posso afirmar (uma vez que, historicamente, também fiz parte daquela realidade) que quem questiona a realidade brasileira dos anos da ditadura é a própria escritora — enquanto participante ativa de tal momento —, muito bem resguardada pela complexidade de sua narrativa em forma de ficção. Esta complexidade, assinalada em outras narrativas, de outros escritores do período, exemplifica a realidade caótica que prevaleceu naqueles anos malfadados, e que, ainda hoje, há muita dificuldade para reordená-la. Alicerçada por estudos semiológicos do texto ficcional (totalmente distanciada dos iniciais pensamentos estruturalistas de Roland Barthes: “o escritor é um personagem como outro qualquer...”), posso afirmar que é a escritora Lygia, enquanto testemunha ativa da história de seu país (do Brasil), que questiona os chavões antiquados que objetivavam ainda reprimir os impulsos de liberdade sadia dos jovens (nas últimas décadas que marcaram a rejeição ao regime patriarcal). A narrativa de Lygia é uma crítica ao desejo da mulher da época de se casar e adquirir segurança — heranças patriarcais —, apesar da propalada liberação feminina que marcou o início da década de 1960. A autora se vale da ficção, para dar a conhecer aos leitores do futuro os ideais de uma juventude que ainda pensava em casamento como solução para os problemas, porque, as jovens de então, apesar das novas propostas sociais da humanidade, ainda estavam ligadas às normas patriarcais que queriam rejeitar. Os conselhos e as normas de vida, ou seja, todas as leis masculinas continuaram e continuam imperando, aqui, nesta parte do mundo dito pós-moderno, ainda hoje, no final do décimo ano do Terceiro Milênio (e com o anúncio de quatro anos de governo feminino pela frente, governo de uma Presidenta, ex-guerrilheira daquele momento inglório do Brasil, hoje eleita democraticamente, mas que, não tenho dúvida, terá de enfrentar os últimos estertores do milenar preconceito contra a mulher).

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

AS MENINAS DE LYGIA FAGUNDES TELLES - REALIDADE x FICÇÃO: MULHERES BRASILEIRAS VIVENCIANDO UM MOMENTO POLÍTICO DESCONCERTANTE - 2

AS MENINAS DE LYGIA FAGUNDES TELLES - REALIDADE x FICÇÃO: MULHERES BRASILEIRAS DE MEADOS DO SÉCULO XX VIVENCIANDO UM MOMENTO POLÍTICO DESCONCERTANTE - 2

NEUZA MACHADO

Esta inquirição, sobre a mulher como escritora de uma determinada fase de nossa história política, permitiu-me raciocinar sobre a realidade sócio-vivencial das mulheres da época e raciocinar também sobre a importante atuação das mesmas à época da ditadura militar (em contra-ponto com a atual realidade, uma vez que, neste ano de 2010, o Povo Brasileiro elegeu uma representante feminina como Chefe da Nação). Lygia Fagundes Telles, como autora de muitos textos ficcionais que se enquadram naquele período, realça aqui, singularmente, um desconcertante momento político de nossa História.

Esta minha apreciação da narrativa As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, no que pese a intromissão de algumas observações pessoais, requer a qualificação de texto teórico-crítico. Assim explicado, a Crítica Sociológica, pelo ponto de vista de Georg Lukács, permitiu-me identificar o escritor da Era Pós-Moderna, principalmente o ficcionista do século XX, como um ser social em comunhão ou conflito com seu espaço substancial. Já distanciado dos valores hierárquicos das eras anteriores — valores que exaltavam as experiências de vida e que submetiam o narrador do passado às exigências de sua época —, o criador literário — do século XX até o final — se viu obrigado a adaptar-se a novas formas ficcionais que pudessem refletir o desequilíbrio do homem de sua época (envolto por preocupações cotidianas e sem perspectivas existenciais). Os personagens-narradores pós-modernos se situavam, no âmbito da narrativa literária (em sentido global), num plano intermediário entre o histórico e o ficcional, ao mesmo tempo em que se situavam também no plano da História, propriamente dito, como singularidades ativas do seu próprio núcleo social, portanto, inseparáveis da ação do mundo que os cercava.

Por intermédio dos postulados sociológicos, percebo o narrador em terceira pessoa e as narradoras que representam, em primeira pessoa, os pensamentos das três jovens, que pontificam o universo ficcional de As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, como representantes de um momento histórico-social que marcou a juventude das décadas de 60/70. A narrativa de Lygia indica — sob o encobrimento/desvelamento do texto literário — como era a realidade pessoal-social daquelas jovens que vivenciaram a ditadura instalada no Brasil naqueles anos. É certo que a autora não fala claramente sobre o assunto, e, condicionada ao momento, certamente não poderia falar, já que a narrativa veio à luz nos idos de 70, antes do término histórico do regime militar. Entretanto, fica visível a sombra desse período histórico do Brasil, graças aos monólogos das personagens e, principalmente, da atuação da personagem Lião, escritora frustrada, que dedicou seu último romance, O último véu, a Guevara (além de ser subversiva, sequestradora, e, para o tal momento, com o terrível agravante de ser também aluna de Ciências Sociais).

domingo, 26 de dezembro de 2010

AS MENINAS DE LYGIA FAGUNDES TELLES - A AVALIAÇÃO DO PAPEL DA BRASILEIRA-ESCRITORA EM MEADOS DO SÉCULO XX - 1

AS MENINAS DE LYGIA FAGUNDES TELLES - A AVALIAÇÃO DO PAPEL DA BRASILEIRA-ESCRITORA EM MEADOS DO SÉCULO XX - 1

NEUZA MACHADO

A avaliação do papel da Brasileira-Escritora do Século XX, principalmente, da escritora dos anos 60/70, se faz necessária, porque o momento político do Brasil, naquele período, promoveu novas formas de criação literária que, no mesmo instante em que escondiam nos subterrâneos da escrita a crise social — que se propagava rapidamente —, revelavam, por meio de metáforas bem trabalhadas, as várias formas de tortura sofridas pelo Povo brasileiro à época da Ditadura. A liberdade de imprensa, a liberdade criativa, todos os meios de comunicação estavam sob suspeita, e, assim, não era permitido ao escritor — homem ou mulher — externar a realidade deprimente de um país que sofria a mais terrível forma de ditadura: a militar.

Por um ângulo interdisciplinar, a narrativa de Lygia Fagundes Telles será por mim dialetizada, uma vez que, opacamente, ou seja, criativamente, a escritora impõe-se transmitir — ficcionalmente — a sua interpretação das experiências vitais da mulher dos anos 60/70 por meio de suas personagens conflitantes.

Aqui, o desenrolar narrativo será analisado também pela perspectiva histórica, porquanto (e não há como negar as evidências) As Meninas de Lygia são, na verdade, as várias faces ficcionais da mulher brasileira dos anos 60/70, aquela que participou socialmente de um período conturbado da segunda metade do Século XX, em um país historicamente desajustado desde os seus primórdios. Reconheço que não se pode separar as três personagens e a autora (integrante dessa mesma realidade), porque cada uma completa a outra e vice-versa, assim como todas as personagens secundárias da narrativa que expressam, sem dúvida, a multiplicidade de faces de um mesmo espelho (um tema presente na literatura pós-moderna). Lygia Fagundes Telles, enquanto ser social, participante de uma determinada fase da História do Brasil, consciente das questões sociais de seu momento, e de acordo com a sua natureza feminina, mimetiza uma realidade fragmentada por intermédio do entrelaçamento dos pontos de vista diferentes de suas narradoras. Suas personagens femininas representam a dilaceração da mulher brasileira da segunda metade do Século XX, submetida às mudanças sócio-político-familiares ocorridas no mundo, e em um período de transição sem alicerces para o futuro.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

VOTOS DE BOAS FESTAS AOS SEGUIDORES DOS MEUS BLOGS E AOS VISITANTES

VOTOS DE BOAS FESTAS AOS SEGUIDORES DOS MEUS BLOGS E AOS VISITANTES

NEUZA MACHADO

Aos seguidores de meus Blogs:
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Rosemary
Vagner Magalhães
Viviane Peres

E aos brasileiros e estrangeiros desconhecidos, mas que me honram com as visitas diárias aos meus Blogs:

UM FELIZ NATAL E UM PRÓSPERO ANO NOVO!

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

HORA ABSURDA - FERNANDO PESSOA: O POETA DIANTE DE UMA CIRCUNSTÂNCIA INACEITÁVEL


HORA ABSURDA - FERNANDO PESSOA: O POETA DIANTE DE UMA CIRCUNSTÂNCIA INACEITÁVEL


NEUZA MACHADO




Hoje, neste meu Bloguinho, apresento-lhes um poema de Fernando Pessoa, para repensarmos o glorioso passado histórico de Portugal:

Quem é este tu que paira incógnito nestes versos de Fernando Pessoa?

Por que Fernando Pessoa se exprime poeticamente como a "Hora Absurda"?

Por que o Poeta, enquanto reflexo da "Hora Absurda", exterioriza-se como receptáculo de "assombros" e de "escombros"?





HORA ABSURDA


Fernando Pessoa


O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, a um canto...
Minha idéia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e no entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a idéia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p’la maré cheia,
E a minha idéia de te sonhar uma caravana de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá-fora... é em mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para naus!... Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
Do Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudade de si ante aquele lugar – outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...
E que querem ao lado aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

Por que me aflijo e me enfermo?...
Deitam-se nuas ao lugar
Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a idéia de naufragar,
E a idéia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes... Ainda
Há rastos de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a idéia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo o ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar... Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaros ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Por que não há de ser o Norte e o Sul?.. O que está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua idéia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque –
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam se o tivessem...

É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã – como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha ao meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema –Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

ALMADA NEGREIROS – UM FICCIONISTA PORTUGUÊS MUITO SENHOR DE SUA VONTADE

ALMADA NEGREIROS – UM FICCIONISTA PORTUGUÊS MUITO SENHOR DE SUA VONTADE

NEUZA MACHADO

Para reconsiderarmos todos os diferenciados acontecimentos de nosso recente passado brasileiro (ou mesmo, do mundo globalizado), convido-os a um novo repensar reflexivo de tais eventos. Para que as novas ponderações sobre o assunto possam alcançar um julgamento dialetizado (não estagnado), a narrativa ficcional “O Cágado”, do escritor português Almada Negreiros (uma narrativa aparentemente insólita publicada em 1921), certamente será de grande valia.


O CÁGADO


Almada Negreiros


Havia um homem que era muito senhor da sua vontade. Andava às vezes sozinho pelas estradas a passear. Por uma dessas vezes viu no meio da estrada um animal que parecia não vir a propósito – um cágado.

O homem era muito senhor da sua vontade, nunca tinha visto um cágado; contudo, agora estava a acreditar. Acercou-se mais e viu com os olhos da cara que aquilo era, na verdade, o tal cágado da zoologia.

O homem que era muito senhor da sua vontade ficou radiante, já tinha novidades para contar ao almoço, e deitou a correr para casa. A meio caminho pensou que a família era capaz de não aceitar a novidade por não trazer o cágado com ele, e parou de repente. Como era muito senhor da sua vontade, não poderia suportar que a família imaginasse que aquilo do cágado era história dele, e voltou atrás. Quando chegou perto do tal sítio, o cágado, que tinha desconfiado da primeira vez, enfiou buraco abaixo como quem não quer a coisa.

O homem que era muito senhor da sua vontade pôs-se a espreitar para dentro e depois de muito espreitar não conseguiu ver senão o que se pode ver para dentro dos buracos, isto é, muito escuro. Do cágado, nada. Meteu a mão com cautela e nada; a seguir até ao cotovelo e nada; por fim o braço todo e nada. Tinham sido experimentadas todas as cautelas e os recursos naturais de que um homem dispõe até ao comprimento do braço e nada.

Então foi buscar auxílio a uma vara compridíssima, que nem é habitual em varas haver assim tão compridas, enfiou-a pelo buraco abaixo, mas o cágado morava ainda muito mais lá para o fundo. Quando largou a vara, ela foi por ali abaixo, exatamente como uma vara perdida.

Depois de estudar novas maneiras, a ofensiva ficou de fato submetida a nova orientação. Havia um grande tanque de lavadeiras a dois passos e ao lado do tanque estava um bom balde dos maiores que há. Mergulhou o balde no tanque e, cheio até mais não, despejou-o inteiro para dentro do buraco do cágado. Um balde só já ele sabia que não bastava, nem dez, mas quando chegou a noventa e oito baldes e que já faltavam só dois para cem e que a água não havia meio de vir ao de cima, o homem que era muito senhor da sua vontade pôs-se a pensar em todas as espécies de buracos que possa haver.

- E se eu dissesse à minha família que tinha visto o cágado? – pensava para si o homem que era muito senhor da sua vontade. Mas não! Toda a gente pode pensar assim menos eu, que sou muito senhor da minha vontade.

O maldito sol também não ajudava nada. Talvez que fosse melhor não dizer nada do cágado ao almoço. A pensar se sim ou não, os passos dirigiam-se involuntariamente para as horas de almoçar.

– Já não se trata de eu ser um incompreendido com a história do cágado, não; agora trata-se apenas da minha força de vontade. É a minha força de vontade que está em prova, esta é ocasião propícia, não percamos tempo! Nada de fraquezas!

Ao lado do buraco havia uma pá de ferro, destas dos trabalhadores rurais. Pegou na pá e pôs-se a desfazer o buraco. A primeira pazada de terra, a Segunda, a terceira, e era uma maravilha contemplar aquela majestosa visibilidade que punha os nossos olhos em presença do mais eficaz testemunho da tenacidade, depois dos antigos. Na verdade, de cada vez que enfiava a pá na terra, com fé, com robustez, e sem outras intenções a mais, via-se perfeitamente que estava ali uma vontade inteira; e ainda que seja cientificamente impossível que a terra rachasse de cada vez que ele lhe metia a pá, contudo era indiscutivelmente esta a impressão que lhe dava. Ah, não! Não era um vulgar trabalhador rural. Via-se perfeitamente que era alguém muito senhor da sua vontade e que estava ali por acaso, por imposição própria, contrafeito, por necessidade do espírito, por outras razões diferentes das dos trabalhadores rurais, no cumprimento de um dever, um dever importante, uma questão de vida ou de morte – a vontade.

Já estava na nonagésima pazada de terra; sem afrouxar, com o mesmo ímpeto da inicial, foi completamente indiferente por um almoço a menos. Fosse ou não por um cágado, a humanidade iria ver solidificada a vontade de um homem.

A mil metros de profundidade a pino, o homem que era muito senhor da sua vontade foi surpreendido por dolorosa dúvida – já não tinha nem a certeza se era a qüinquagésima milionésima octogésima quarta. Era impossível recomeçar, mais valia perder uma pazada.

Até ali não havia indícios nem da passagem da vara, da água ou do cágado. Tudo fazia crer que se tratava de um buraco supérfluo; contudo, o homem era muito senhor da sua vontade, sabia que tinha de haver-se de frente com todas as más impressões. De fato, se aquela tarefa não houvesse de ser árdua e difícil, também a vontade não podia resultar superlativamente dura e preciosa.

Todas as noções de tempo e de espaço, e as outras noções pelas quais um homem constata o quotidiano, foram todas uma por uma dispensadas de participar no esburacamento. Agora, que os músculos disciplinados num ritmo único estavam feitos ao que se quer pedir, eram necessários todos os raciocínios e outros arabescos cerebrais, não havia outra necessidade além da dos próprios músculos.

Umas vezes a terra era mais capaz de se deixar furar por causa das grandes camadas de areia e de lama; todavia, estas facilidades ficavam bem subtraídas quando acontecia ser a altura de atravessar uma dessas rochas gigantescas que há no subsolo. Sem incitamento nem estímulo possível por aquelas paragens, é absolutamente indispensável recordar a decisão com que o homem muito senhor da sua vontade pegou ao princípio na pá do trabalhador rural para justificarmos a intensidade e a duração desta perseverança. Inclusive, a própria descoberta do centro da Terra, que tão bem podia servir de regozijo ao que se aventura pelas entranhas do nosso planeta, passou infelizmente desapercebida ao homem que era muito senhor da sua vontade. O buraco do cágado era efetivamente interminável. Por mais que se avançasse, o buraco continuava ainda e sempre. Só assim se explica ser tão rara a presença de cágados à superfície devido à extensão dos corredores desde a porta da rua até aos aposentos propriamente ditos.

Entretanto, cá em cima na terra, a família do homem que era muito senhor da sua vontade, tendo começado por o ter dado por desaparecido, optara, por último, pelo luto carregado, não consentindo a entrada no quarto onde ele costumava dormir todas as noites.

Até que uma vez, quando ele já não acreditava no fim das covas, já não havia, de fato, mais continuação daquele buraco, parava exatamente ali, sem apoteose, sem comemoração, sem vitória, exatamente como um simples buraco de estrada onde se vê o fundo ao sol. Enfim, naquele sítio nem a revolta servia para nada.

Caindo em si, o homem que era muito senhor da sua vontade pediu-lhe decisões, novas decisões, outras; mas ali não havia nada a fazer, tinha esquecido tudo, estava despejado de todas as coisas, só lhe restava saber cavar com uma pá. Tinha, sobretudo, muito sono, lembrou-se da cama com lençóis, travesseiro e almofada fofa, tão longe! Maldita pá! O cágado! E deu com a pá com força no fundo da cova. Mas a pá safou-se-lhe das mãos e foi mais fundo do que ele supunha, deixando uma greta aberta por onde entrava uma coisa de que ele já se tinha esquecido há muito – a luz do sol. A primeira sensação foi de alegria, mas durou apenas três segundos, a Segunda foi de assombro: teria na verdade furado a Terra de lado a lado?

Para se certificar alargou a greta com as unhas e espreitou para fora. Era um país estrangeiro; homens, mulheres, árvores, montes e casas tinham outras proporções diferentes das que ele tinha na memória. O sol também não era o mesmo, não era amarelo, era de cobre cheio de azebre e fazia barulho nos reflexos. Mas a sensação mais estranha ainda estava para vir: foi que, quando quis sair da cova, julgava que ficava em pé em cima do chão como os habitantes daquele país estrangeiro, mas a verdade é que a única maneira de poder ver as coisas naturalmente era pondo-se de pernas para o ar...

Como tinha muita sede, resolveu ir beber água ali ao pé e teve de ir de mãos no chão e o corpo a fazer pino, porque de pé subia-lhe o sangue à cabeça. Então, começou a ver que não tinha nada a esperar daquele país onde nem sequer se falava com a boca, falava-se com o nariz.

Vieram-lhe de uma vez todas as saudades da casa, da família e do quarto de dormir. Felizmente estava aberto o caminho até casa, fora ele próprio quem o abrira com uma pá de ferro. Resolveu-se. Começou a andar o buraco todo ao contrário. Andou, andou, andou; subiu, subiu, subiu...

Quando chegou cá acima, ao lado do buraco estava uma coisa que não havia antigamente – o maior monte da Europa, feito por ele, aos poucochinhos, às pazadas de terra, uma por uma, até ficar enorme, colossal, sem querer, o maior monte da Europa.

Este monte não deixava ver nem a cidade onde estava a casa da família, nem a estrada que dava para a cidade, nem os arredores da cidade que faziam um belo panorama. O monte estava por cima disto tudo e de muito mais.

O homem que era muito senhor da sua vontade estava cansadíssimo por ter feito duas vezes o diâmetro da Terra. Apetecia-lhe dormir na sua querida cama, mas para isso era necessário tirar aquele monte maior da Europa. Foi restituindo à Terra, uma por uma, todas as pazadas com que a tinha esburacado de lado a lado. Começavam já a aparecer as cruzes das torres, os telhados das casas, os cumes dos montes naturais, a casa da sua família, muita gente suja de terra, por ter estado soterrada, outros que ficaram aleijados, e o resto como dantes.

O homem que era muito senhor da sua vontade já podia entrar em casa para descansar, mas quis mais, quis restituir à Terra todas as pazadas, todas. Faltavam poucas, algumas dúzias apenas. Já agora valia a pena fazer tudo bem até ao fim. Quando já era a última pazada de terra que ele ia meter no buraco, portanto a primeira que ele tinha tirado ao princípio, reparou que o torrão estava a mexer por si, sem ninguém lhe tocar; curioso, quis ver porque era – era o cágado.

(ALMADA NEGREIROS. Contos e Novelas. Lisboa: Estampa, 1970: 111-116)

sábado, 27 de novembro de 2010

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO – “O GRANDE SONHO QUASE VIVIDO”

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO – “O GRANDE SONHO QUASE VIVIDO”

NEUZA MACHADO

"Quer queira quer não, o romancista revela o fundo de seu ser, ainda que se cubra literalmente de personagens. Em vão ele se servirá "de uma realidade" como uma tela. É ele que projeta essa realidade, é ele sobretudo que a encadeia. (Gaston Bachelard)


Mário de Sá-Carneiro (Portugal, 1890 / França, 1916), poeta e ficcionista, participou, ao lado de Fernando Pessoa, Almada Negreiros e outros importantes escritores, da primeira fase do chamado Modernismo Português.

As reformulações no âmbito da literatura portuguesa, a partir da revista Orpheu, refletiram de certa forma a realidade beligerante da Europa (Primeira Guerra Mundial - 1914-1917), uma caótica realidade que atingiu também, interlinearmente, outros pontos da Terra. Entretanto, diferente dos poemas revolucionários, propostos pelos poetas futuristas de Paris, liderados pelo italiano Marinetti (entre os anos de 1909 a 1910), nas inovações poéticas do grupo português não se realçou a chamada rejeição aos valores literários do passado. Ao contrário, evidenciou-se um saudosismo diferenciado, realizado por meio de inovadoras operações de como apreender a poesia (certamente uma nova orientação formal no campo da ação poética), mas, internamente, conservando uma indelével ligação com o glorioso passado de Portugal.

Mário de Sá-Carneiro, enquanto poeta e escritor de grande sensibilidade, deixou transparecer em seus poemas e em sua ficção a própria inadequação à realidade beligerante e ameaçadora que o circundava. Entre os poetas de sua geração, foi o que mais sofreu a dor da “perda da identidade” (característica primordial do homem do século XX), a falta de domínio do nome familiar reverenciado, a perda da antiga aura dos heróis portugueses, desbravadores de inóspitos mundos (“E mãos de herói, sem fé, acobardadas, Puseram grades sobre os precipícios...”).

O poema “Quase”, transcrito abaixo, poderá revelar-lhes muito mais sobre este grande poeta da primeira fase do Modernismo Português:



QUASE

Mário de Sá-Carneiro

Um pouco mais de sol — eu era brasa,
Um pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim — quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
— Ai a dor de ser — quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

CESÁRIO VERDE E A INDÚSTRIA CULTURAL DO SÉCULO XIX

CESÁRIO VERDE E A INDÚSTRIA CULTURAL DO SÉCULO XIX

NEUZA MACHADO

Cesário Verde, poeta do Realismo Português, legou-nos, em forma de versos, um importante depoimento sobre a realidade cultural de seu país, na segunda metade do século XIX. Em seu poema “Contrariedades”, além de desenvolver poeticamente um consciente olhar crítico à miséria que atingia uma grande parte da população portuguesa, reclamou do descaso dos editores, os quais relegavam ao ostracismo as produções poético-literárias de mais valor (favorecendo as matérias insípidas, entretanto, financeiramente, lucrativas).



CONTRARIEDADES

Cesário Verde


Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensantemente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de falta d’ar; morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve conta à botica!
Mal ganha para as sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa de um jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopéia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redação, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa
Vale um desdém solene.

Com raras excepções, merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo
Um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa

A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se, e todavia, à tarde, francamente,
Ouço-a cantar uma canção plangente
Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame a intriga, o anúncio, a blague
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras...

E estou melhor; passou-se a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

PARA REFLETIRMOS SOBRE O ATUAL CONCEITO DE EDUCAÇÃO NO BRASIL


PARA REFLETIRMOS SOBRE O ATUAL CONCEITO DE EDUCAÇÃO NO BRASIL

NEUZA MACHADO

Para que os Internautas-Leitores deste Blog possam refletir sobre o conceito de educação no Brasil, nestes anos iniciais do Terceiro Milênio (interagindo conscientemente com o inovador “repouso fervilhante” bachelardiano, à semelhança do que nos ensina o filósofo francês Gaston Bachelard, em seu livro A Dialética da Duração), e do Prefácio do livro de Carlos Brandão A questão política da educação popular (publicado em 1982), insiro aqui também o ponto de vista de Luzia Pereira, estudante de Letras, em
seu momento histórico de 2010 (sobre este assunto ainda tão controvertido em nossos meios educacionais).


EDUCAÇÃO COM AMOR (2010) – TEXTO SOBRE O CONCEITO DE EDUCAÇÃO PELO PONTO DE VISTA DE UMA ALUNA DE LETRAS

Luzia Pereira


Um dia alguém que se achava no direito de determinar o que era o certo e o errado estabeleceu que as crianças de famílias burguesas deveriam ser educadas de tal forma que os valores de sua classe, a partir daquela época, fossem gravados em suas mentes para nunca mais esquecerem. Não posso afirmar se essa “marca” foi feita com indiferença ou com amor, somente sei que algumas crianças do passado tiveram sorte e outras não em seus processos de aprendizagem.

Foram os pedagogos, anteriores ao século XX, que iniciaram a revolução na maneira de encarar o ensino formal oferecido às crianças e promoveram a aproximação da percepção infantil, imaginativa e pré-consciente aos conceitos já formados pelos adultos. Mas, como esses pedagogos ainda estavam presos aos conceitos formais, foi necessário acontecer o cisma entre a forma e o significado, por ocasião do Movimento Modernista.

No Brasil, especificamente, percebe-se que foram os nossos ficcionistas e poetas do início e meados do século XX que conseguiram se desprender do passado e estimular um contato renascido e dinâmico entre si e seus leitores, e entre estes e a realidade ao redor. De tal forma que as primeiras percepções puderam vir à tona, como se, tanto ficcionistas e leitores, voltassem a ser crianças vendo o mundo pela primeira vez. Em seus escritos, foram expostos os novos conceitos, plenos de verdade, que bem poderiam ser chamados de ensinamentos. Constata-se que esses ensinamentos, apesar de estarem entrelaçados pelos conceitos formais, estavam repletos do vigor de novas imagens. Essas, por sua vez, assemelhavam-se às imagens que povoam a mente das crianças.


“A educação pela pedra”, de João Cabral de Melo Neto, mais do que dizer que a pedra ensina, quer dizer que, em meio à pedra, se ensina, e, talvez, ensina-se mais, porque aquele que ensinou com ou em meio à pedra, ensinou somente aquilo que sabia, que era o que havia sido entendido como de valor e que, portanto, valia a pena ser ensinado. Logo ensinou com amor.


O mesmo entendimento de João Cabral aparece no testemunho de um pai oriundo do meio rural. Esse pai poderia não saber as regras da gramática, mas com certeza sabia as regras de como viver em sociedade. A diferença estava no fato de que a sociedade para a qual aquele pai preparava seu filho, era feita de pessoas semelhantes a ele, sem maiores aspirações quanto à inserção em grupos sociais mais exigentes. Sendo assim, por que ele deveria se preocupar e se sacrificar para oferecer uma formação acadêmica a seus filhos? No entanto, esse pai agricultor conseguiu demonstrar que mais vale um ensinamento dado com amor e que foi testado antes pelo próprio “professor” do que um ensinamento muitas vezes vazio e descontextualizado, por isso mesmo inócuo e sem valor para a vida do futuro cidadão.



POEMA "A EDUCAÇÃO PELA PEDRA" DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO PUBLICADO EM 1966


A EDUCAÇÃO PELA PEDRA

João Cabral de Melo Neto


Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela da dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta;
lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.


PREFÁCIO DO LIVRO A QUESTÃO POLÍTICA DA EDUCAÇÃO POPULAR ORGANIZADO POR CARLOS BRANDÃO E PUBLICADO NO ANO DE 1982

(BRANDÃO, Carlos (Org.). A Questão Política da Educação Popular. São Paulo: Brasiliense, 1982: 7 – 10)


... Agora, o senhor chega e pergunta: “Ciço, o que é educação?” Tá certo. Tá bom. O que que eu penso, eu digo. Então veja, o senhor fala: “Educação”; daí eu falo: “educação”. A palavra é a mesma, não é? A pronúncia, eu quero dizer. É uma só: “Educação. Mas então eu pergunto pro senhor: “É a mesma coisa? É do mesmo que a gente fala quando diz essa palavra?” Aí eu digo: “Não”. Eu digo pro senhor desse jeito: “Não, não é”. Eu penso que não.

Educação... quando o senhor chega e diz “educação”, vem do seu mundo, o mesmo, um outro. Quando eu sou quem fala, vem dum outro lugar, de um outro mundo. Vem dum fundo de oco que é o lugar da vida dum pobre, como tem gente que diz. Comparação, no seu essa palavra vem junto com quê? Com escola, não vem? Com aquele professor fino, de roupa boa, estudado; livro novo, bom, caderno, caneta, tudo muito separado, cada coisa do seu jeito, como deve ser. Um estudo que cresce e que vai muito longe de um saberzinho só de alfabeto, uma conta aqui e outra ali. Do seu mundo vem um estudo de escola que muda gente em doutor. É fato? Penso que é, mas eu penso de longe, porque eu nunca vi isso por aqui.

Então, quando o senhor vem e fala a pronúncia “educação”, na sua educação tem disso. Quando o senhor fala a palavra conforme eu sei pronunciar, também, ela vem misturada no pensamento com isso tudo; recursos que no seu mundo tem. Uma coisa assim como aquilo que a gente conversava outro dia, lembra? Dos evangelhos: “Semente que caiu na terra boa e deu fruto bom”, (...)


Quando eu falo o pensamento vem dum outro mundo. Um que pode até ser vizinho do seu, vizinho assim, de confrontante, mas não é o mesmo. A escolinha cai-não-cai ali num canto da roça, a professorinha dali mesmo, os recursos tudo como é o resto da regra de pobre. Estudo? Um ano, dois, nem três. Comigo não foi nem três. Então eu digo “educação” e penso “enxada”, o que foi pra mim.


Porque é assim desse jeito que eu queria explicar pro senhor. Tem uma educação que vira o destino do homem, não vira? Ele entra ali com um destino e sai com outro. Quem fez? Estudo; foi estudo regular: um saber completo. Ele entra dum tamanho e sai do outro. Parece que essa educação que foi a sua tem uma força que tá nela e não tá. Como é que um menino como eu fui mudá num doutor, num professor, num sujeito de muita valia?

Agora, se eu quero lembrar da minha: “enxada”. Se eu quero lembrar: “trabalho”. E eu hoje só dou conta de um lembrarzinho: a escolinha, um ano, dois, um caderninho, um livro, cartilha? Eu nem sei, eu não lembro. Aquilo de um bê-a-bá, de um alfabetozinho. Deu pra aprender? Não deu. Deu pra saber escrever um nome, pra ler uma letrinha, outra. Foi só. O senhor sabe? Muito companheiro meu na roça, na cidade mesmo, não teve nem isso. Agente vê velho aí pra esses fundos que não sabe separar um A dum B. gente que pega dum lápis e desenha o nome dele lá naquela dificuldade, naquele sofrimento. Mão que foi feita pro cabo da enxada acha a caneta muito pesada e quem não teve prazo dum estudozinho regular quando era menino, de velho é que não aprende mais, aprende? Pra quê? Porque eu vou dizer uma coisa pro senhor: pra quem é como esse povo de roça o estudo de escola é de pouca valia, porque o estudo é pouco e não serve pra fazer da gente um melhor. Serve só pra gente seguir sendo como era, com um pouquinho de leitura. (...)

O senhor faz pergunta com um jeito de quem sabe já a resposta. Mas eu explico assim. A educação que chega pro senhor é a sua, da sua gente, é pros usos do seu mundo. Agora, a minha educação é a sua. Ela tem o saber de sua gente e ela serve pra que mundo? Não é assim mesmo? A professora da escola dos seus meninos pode até ser uma vizinha sua, uma parente, até uma irmã, não pode? Agora, e a dos meus meninos? Porque mesmo nessas escolinhas de roça, de beira de caminho, conforme é a deles, mesmo quando a professorinha é uma gente daqui, o saber dela, o saberzinho dos meninos, não é. Os livros, eu digo, as idéias que tem ali. Menino aqui aprende na ilusão dos pais; aquela ilusão de mudar com estudo, um dia. Mas acaba saindo como eu, como tantos, com umas continhas, uma leitura. Isso ninguém não vai dizer que não é bom, vai? Mas pra nós é uma coisa que ajuda e não desenvolve.


Então, “educação”. É por isso que eu lhe digo que a sua é a sua e a minha é a sua. Só que a sua lhe fez. E a minha? Que a gente aprende mesmo, pros usos da roça, é na roça. É ali mesmo: um filho com o pai, uma filha com a mãe, com uma avó. Os meninos vendo os mais velhos trabalhando.

Inda ontem o senhor me perguntava da Folia dos Santos Reis que a gente vimos em Caldas: “Ciço, como é que um menino aprende o cantorio? As respostas?” Pois o senhor mesmo viu o costume. Eu precisei lhe ensinar? Menino tão ali, vai vendo um outro, acompanha o pai, um tio. Olha, aprende. Tem inclinação prum cantorio? Prum instrumento? Canta, tá aprendendo; pega, toca, tá aprendendo. Toca uma caixa (tambor da Folia de Reis), tá aprendendo a caixa; faz um tipe (tipo de voz do cantorio), tá aprendendo cantar. Vai assim, no ato, no seguir do acontecido.

Agora, nisso tudo tem uma educação dentro, não tem? Pode não ter um estudo. Um tipo dum estudo pode ser que não tenha. Mas se ele não sabia e ficou sabendo é porque no acontecido tinha uma lição escondida. Não é uma escola; não tem um professor assim na frente, com o nome “professor”. Não tem... Você vai juntando, vai juntando e no fim dá o saber do roceiro, que é um tudo que a gente precisa pra viver a vida conforme Deus é servido.


Quem que vai chamar isso aí de uma educação? Um tipo dum ensino esparramado, coisa de sertão. Mas tem, não tem? Não sei. Podia ser que tivesse mais, por exemplo, na hora que um mais velho chama um menino, um filho. Chama num canto, fala, dá um conselho, fala sério um assunto: assim, assim. Aí pode. Ele é um pai, um padrinho, um mais velho. Na hora ele representa como de um professor, até como um padre. Tem um saber que é falado ali naquela hora. Não tem um estudo, mas tem um saber. O menino baixa a cabeça, daí ele escuta; aprendeu, às vezes não esquece mais nunca.


Então vem um e pergunta assim: “O Ciço, o Antônio Ciço, seus meninos tão recebendo educação?” Que seja um padre, que seja o senhor. Eu respondo: “Homem, uma eles tão. Em casa eles tão, que a gente nunca deixa de educar um filho conforme os costumes. Mas educação de estudo, fora os dois menorzinhos, eles tão também, que eles tão na escola”. Então quer dizer que é assim: tem uma educação ― que eu nem sei como é que é mesmo o nome que ela tem ― que existe dentro do mundo da roça, entre nós. Agora tem uma ― essa é que se chama mesmo “educação” ― que tem na escola. Essa que eu digo que é a sua. É a educação que eu digo: “de estudo”, de escola; professor, professorinha, coisa e tal. Daqui, mas de lá.


A gente manda os meninos pra escola. Quem é que não manda? Só mesmo um sujeito muito atrasado. Um que muda daqui pra lá a toda hora. Um outro que mora aí, pros fundos de um sertão, longe de tudo. A gente manda, todo mundo por aqui manda menino pro estudo. É longe, o senhor viu, mas manda. Podiam tá na roça com o pai, mas tão na escola. Mas quem é pobre e vive nessa descrença de trabalhar dum tanto, a gente crê e descrê. Menino desses pode crescer aí sem um estudozinho que seja, da escola? Não pode. Eu digo pro senhor, não pode. O meu saberzinho que já é muito pouco, veio de aprender com os antigos, mais que da escola; veio a poder de assunto, mais do que de estudo regular. Finado meu pai já dizia assim. Mas pra esses meninos, quem sabe o que espera? Vai ter vida pra eles na roça todo o tempo? Tá parecendo que não. E, me diga, quem é quem na cidade sem um saberzinho de estudo? Se bem que a gente fica pensando: “O que é que a escola ensina, meu Deus?”. Sabe? Tem vez que eu penso que pros pobres a escola ensina o mundo como ele não é. (...)


Agora, o senhor chega e diz: “Ciço, e uma educação dum outro jeito? Um saber pro povo do mundo como ele é?” Esse eu queria ver explicado. O senhor fala: “Eu tô falando duma educação pro povo mesmo, um tipo duma educação dele, assim, assim”. Essa eu queria saber como é. Tem? Aí o senhor diz que isso bem podia ser feito; tudo junto: gente daqui, de lá, professor, peão, tudo. Daí eu pergunto: “Pode? Pode ser dum jeito assim? Pra quê? Pra quem? (...)


Antônio Cícero de Sousa.

Lavrador de sítio na estrada entre Andradas e Caldas, no sul de Minas Gerais. Também dito Antônio Ciço, Tonho Ciço e, ainda, Ciço.


APRESENTAÇÃO DO LIVRO A QUESTÃO POLÍTICA DA EDUCAÇÃO POPULAR ORGANIZADO POR CARLOS BRANDÃO E PUBLICADO NO ANO DE 1982

(BRANDÃO, Carlos (Org.). A Questão Política da Educação Popular. São Paulo: Brasiliense, 1982: 11)


Num livro com sete artigos, bom é que cada autor faça a introdução do seu. E que esta aqui sirva para apresentar os autores e o seu tempo.

De um modo ou de outro todas as pessoas aqui reunidas estiveram envolvidas em projetos, experiências e movimentos que começaram a misturar nomes tradicionais como “cultura” e “educação” com o adjetivo “popular”, do que resultou, menos do que um conjunto novo de conceitos para os dicionários de Pedagogia, um momento de renovação na história da educação no Brasil. Pela primeira vez, entre muitos tropeços e atropelos, mas sem meias-verdades, procurava-se pensar a educação às avessas e associá-la de fato a um tipo de prática descaradamente política, a que se acostumou chamar, de lá para agora, de libertação popular.

Aquele foi o começo do tempo da transformação da idéia e da prática de uma Educação de Adultos inocente, vinculada a programas de Desenvolvimento Comunitário aparentemente despolitizados, logo a serviço da política oficial de dominância, numa Educação Popular cuja teoria, desde Paulo Freire, faz a denúncia dos usos políticos da educação opressora e cuja prática converte o trabalho pedagógico do educador em favor do trabalho político (...)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

PARA NUNCA ESQUECERMOS OS 60 MILHÕES DE MISERÁVEIS QUE VIVERAM À MÍNGUA NO PASSADO DO BRASIL

PARA NUNCA ESQUECERMOS OS 60 MILHÕES DE MISERÁVEIS QUE VIVERAM À MÍNGUA NO PASSADO DO BRASIL

NEUZA MACHADO

Quando olho para o passado, não tão distante, e recordo que o Brasil era um país constituído por uma população majoritariamente carente em todos os sentidos, não encontro uma explicação racional para o encaminhamento tão favorável das ações político-econômicas dos últimos oito anos (uma segura e dinâmica realização sócio-econômica do governo do Presidente Lula, apesar de todos os esforços contrários da preconceituosa minoria elitista). A única coisa que me vem à mente, mesmo reconhecendo o aplaudido esforço do governo e de sua equipe, é a possibilidade de ter ocorrido um milagre. Um milagre parecido com o relatado na Bíblia em que Jesus fez dois peixinhos e cinco pãezinhos se multiplicarem e saciarem a fome de cinco mil pessoas.

Para que o leitor reflita sobre a extensão da miséria que assolou o Brasil na segunda metade do século XX, apresento-lhe o poema de Manuel Bandeira, publicado em 1948, e a crônica de Herbert de Souza (o Betinho) sobre a questão da esmola ao pobre. Manuel Bandeira, o poeta que fez Poesia sobre as mais cruas verdades, e Betinho, o sociólogo que assumiu o compromisso de trabalhar em projetos sociais para construir melhor o conceito de solidariedade e cidadania.


O BICHO

Manuel Bandeira

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.


ESMOLA

Herbert de Souza


Nunca consigo deixar de dar esmola. Quando vejo uma pessoa na miséria absoluta, meto a mão no bolso e dou uma ajuda. Naquele momento em que recebe uma esmola, a pessoa excluída de um processo social injusto pode comer alguma coisa. Em tese, pode ser correta esta idéia de que “dar esmola não é bom nem para quem dá nem para quem recebe”. Mas, na prática, a realidade é outra. Quem pede esmola está ou deve estar com fome. Vivo esta contradição, e acho que é a mesma que, no fundo, todo mundo vive. O ideal seria um mundo sem esmola, em que todos tivessem emprego, ganhassem seu salário, tivessem a sua dignidade, sua cidadania resguardada. Mas, infelizmente, nós vivemos em um país onde 20% da população vive na indigência.

Com tanta miséria, o que eu vou fazer no momento em que um menino, com fome, descalço, visivelmente fraco, me pede uma esmola? Vou dizer para ele: não, vá trabalhar! Não posso dizer isso. Estas campanhas como “não dê esmolas” só terão validade se antes for criada uma alternativa verdadeira. Se não, tornam-se perversas. Na situação atual, negar uma esmola a um excluído é um ato de insensibilidade. Não é difícil acabar com a miséria no Brasil. Mas não basta apenas o discurso. A comparação entre o que se faz na área social com o que se faz para salvar bancos é válida, porque para algumas coisas no Brasil somos rápidos e eficientes, mas, para outras, somos lentos e ineficientes, como no trato da questão social.

A miséria é uma vergonha para todos nós e, às vezes, chegamos a nos sentir cúmplices. Em alguma medida podemos ter responsabilidade, uns muito mais do que a maioria. A esmola não é alienante, a não ser quando é a única ação contra a miséria. Eu não posso, ao ver uma pessoa cair na rua, dizer, comodamente: um médico é que deve atender você. Acho que contemplar ou passar por cima é a pior coisa que uma pessoa pode fazer.