ARRAS POR FORO DE ESPANHA: A QUESTÃO DO HERÓI ROMÂNTICO NA LITERATURA PORTUGUESA
NEUZA MACHADO
Alexandre Herculano foi soldado, foi poeta, mas, sobretudo, foi um excepcional narrador das origens e lendas de Portugal. Paralelamente ao seu ofício de Historiador, o escritor romântico português desenvolveu por meio de diretivas ficcionais um modo todo especial de reviver a história do passado de sua nação, dando-lhe um aspecto quase lendário. Observa-se isto em muitas de suas obras, como “O Bispo Negro”, por exemplo, no qual o plano sócio-substancial da narrativa se entrelaça de forma admirável com o imaginário-em-aberto da autêntica criação literária. Em “O Bispo Negro”, Alexandre Herculano, querendo desmitificar a aura de santidade de Afonso Henriques, que se tornou conhecido pelos pósteros como de origem divina, cria-lhe outra aura: a de homem valente e irascível, que não teme nem mesmo a ira de Deus. Em um certo momento da narrativa, ao exigir que o Papa revogasse a sua excomunhão, Afonso Henriques não o faz por medo dos castigos do inferno, mas para reforçar a sua condição de rei, isto é, o seu prestígio como rei. Para tal exigência, usa até mesmo a força física. Quanto ao bispo “negro” será que em verdade existiu? Não se sabe com plena certeza, e aí entra o lendário.
Em “Arras por foro de Espanha”, Herculano não foge à regra. É uma narrativa histórica, repleta das características intrínsecas do romantismo português do século XIX, principalmente a característica da retomada de valores medievais, e, por tal razão, ambientada em pleno século XIV, assim como “O Bispo Negro”, que se estabelece no século XII.
Por intermédio da análise linear há a possibilidade de se detectar uma parte da trajetória do reinado de Dom Fernando, 4o rei da Segunda Dinastia de Portugal, e seu problemático casamento com Dona Leonor Teles de Meneses. Alexandre Herculano realça a idéia de que o povo português da época não aceitava tal união, por julgá-la indigna de seu rei. Dona Leonor já era casada com João Lourenço da Cunha e, mesmo assim, conseguiu conquistar o amor do rei para satisfazer a sua ambição de poder. O rei julgava-se amado e por isso não via esse aspecto negativo da personalidade de Dona Leonor. Estava cego de paixão, mas o povo via, e sofria. Os nobres também desaprovavam, pois a união com uma mulher casada não se adequava às leis religiosas e políticas da fase final da Idade Média. Assim, a nobreza, maledicente e descontente, soube direcionar aos ouvidos da população os indícios de sua própria revolta, e que resultou logo depois em muito sangue derramado (o dote exigido pela rainha) e na vitória da adúltera.
Para um leitor menos exigente, isto é o que fica de concreto em relação à história recontada ficcionalmente por Alexandre Herculano. Mas, na verdade, ao ler-se uma obra ficcional, principalmente quando esta for considerada de primeiríssima qualidade, o leitor analista e/ou intérprete não deverá fixar-se apenas em palavras e orações, e, muito menos, decorar o conteúdo escrito; o que deverá permanecer em seu intelecto é a compreensão do não-dito da obra analisada, ou seja, aquilo que o escritor deixou latente nas entrelinhas da camada visível de seu texto literário. Por exemplo, em uma análise mais profunda, aliada à interpretação fenomenológica, pode-se captar o invisível do texto-arte, isto é, aquilo que só é detectável com o auxílio do entendimento.
Em “Arras por foro de Espanha”, Alexandre Herculano oferece ao leitor uma narrativa dividida em sete partes (é natural em Herculano o uso dos números cabalísticos). Em cada parte se desenvolve um tipo diferente de narração (observar as diferenças inerentes aos conceitos de narrativa e narração), cada qual entremeada por ações distintas. Em todas as narrativas de Herculano não há como se observar um fio narrativo com episódios simultâneos. Os episódios são, ao contrário, estanques, carregados de uma forte carga emocional, episódios semelhantes a quadros que, dispostos ao longo de uma parede, narrassem ao apreciador as peripécias de um momento do passado. O escritor romântico Alexandre Herculano, graças a um narrar singularíssimo, apesar das diretrizes formais de seu momento estético, se metamorfoseia em pintor/ficcionista e, assim, por meio de palavras, oferece aos leitores dos séculos seguintes quadros vivos de um passado distante. Por intermédio de pinceladas narrativas fortes e seguras, caracteriza as personalidades de seus personagens ficcionais.
Em verdade, os personagens em questão existiram, fizeram parte da História da nação portuguesa. Mas, graças ao poder narrativo de Herculano, passam a existir na mente do leitor do porvir por meio do plano metafísico. O caráter diabólico de Dona Leonor adquire uma faceta irreal. Alguns leitores custam a aceitar (outros já aceitam de imediato) o fato de ter existido, em realidade, uma mulher tão pérfida e ambiciosa, sem um mínimo rasgo de bondade. Esta inaceitabilidade gera a dúvida, a dúvida gera a compreensão, a compreensão gera a modificação. O que isto quer dizer? Quer dizer que começam a aparecer perguntas e reflexões, de acordo com a sensibilidade ou de acordo com o conhecimento de cada um. Assim, um determinado leitor neófito poderá dizer: “Que mulher perversa, má, interesseira, sem princípios!” Aí poderá vir o contraponto também de um outro leitor neófito: “Coitada! Foi tão perseguida, caluniada, enlameada. Será que ela não tinha o direito de ser amada? Será que ela foi realmente má? Não teria Herculano (ou a História) acentuado um caráter forte que poderia não ser tão mau assim? Será que ela não foi vítima dos acontecimentos em vez de carrasco?” Assim, graças a pensamentos especulativos, passa-se a uma espécie de compreensão primária das mensagens temporais que estão ocultas no texto ficcional, historicamente passa-se a modificar o caráter dos personagens. O leitor não seria humano se não agisse assim.
Entretanto, o estudioso da literatura portuguesa, desenvolvendo um ponto de vista analítico mais elaborado, poderá aprofundar-se em princípio em sua análise e, posteriormente, na compreensão fenomenológica desta narrativa de Alexandre Herculano em particular, cujo conteúdo naturalmente submete-se ao modelo romântico, e dela retirar as impressões pessoais do autor, as quais se ocultam nas entrelinhas de sua ficção.
Pelo ponto de vista da livre interpretação, escorada naturalmente nos preceitos da orientação fenomenológica, o leitor atento poderá descobrir que a narrativa apresenta um Dom Fernando fraco, subjugado pela paixão por uma mulher de caráter interesseiro. É aceitável essa fraqueza. É comovente a grandiosidade dessa paixão. Mas, ele não foi tão fraco ao enfrentar a oposição da nobreza e do povo em relação ao seu casamento (se bem que a narrativa faz crer que ele era conduzido pelas mãos firmes de Dona Leonor), pois se fosse fraco acataria a decisão da maioria. Não foi fraco, por exemplo, ao selar a condenação dos traidores. Será que, realmente, ele “sentiu horror” ao assinar a condenação? Ou ele, também, era conivente com as idéias de vingança de Dona Leonor? Quem poderá afirmar com certeza o que se passa no coração humano? E, além disso, não se deve esquecer que a história de Herculano segue os pressupostos do romantismo português do século dezenove, e que o conteúdo ficcional da mesma destaca a época de barbarismos da Idade Média. Matar, naquele período medieval era um ato comum. As vinganças também.
Está claro que Herculano, como um fecundo narrador filiado à estética romântica, e principalmente como historiador, possuía um primoroso conhecimento da História de Portugal. A verdade é que, por mais que mostre o caráter negativo de Dona Leonor, ele deixa uma frestazinha, mínima, oferecendo ao leitor a possibilidade de amar a personagem ao invés de odiá-la. Ao ler a frase, já no final da narrativa, “Dona Leonor triunfara”, o leitor de Herculano sente um certo júbilo. É a vitória do mais forte, pelo ponto de vista do padrão narrativo romântico, não importando o sangue derramado. O leitor da estética romântica ama os fortes e corajosos, os fracos não têm vez. O herói ou heroína do Romantismo, ao final, sairá sempre como vencedor
E, Dom Diniz, o meio-irmão de D. Fernando? Este, ao longo da narrativa, é apenas um dos candidatos ao trono vago com a morte do irmão monarca, ou seja, nos domínios da ficção é a força motriz para gerar confusões. Dom Diniz é tão ambicioso quanto Dona Leonor, talvez até mais, pois não se acanha em unir-se ao matador de sua mãe, na tentativa de derrubar aquela que se tornara um entrave às suas pretensões. Herculano pinta-o como um jovem orgulhoso e cheio de brios ao enfrentar o irmão, recusando-se a beijar a mão de Leonor Teles, mas, basta que o analista literário busque o auxílio da História e achará assentado o caráter brigão e virulento do infante. Retomando a História de Portugal, o leitor-analista poderá descobrir que Dom Diniz, em virtude de sua desavença com Leonor Teles, exila-se. Posteriormente, retorna a Portugal, após a batalha de Aljubarrota, mas, o novo rei, Dom João I de Avis (também seu meio-irmão), que já conhecia o caráter irrequieto do infante, envia-o à Inglaterra. Alguns anos depois, torna-se prisioneiro de piratas flamengos. Depois de um longo cativeiro, vai para a Espanha, onde passa a lutar contra Portugal.
Em “Arras por foro de Espanha”, Dom Diniz é o único que não se dobra aos caprichos da rainha, mas também não termina como um vencedor (à moda das regras estilísticas da estética romântica). Afasta-se de cena, à meia-noite, dentro de uma barca que “subia com dificuldade a corrente rápida do Douro”.
Quanto ao povo (a “arraia miúda”), este, por si só, vale como personagem. Não há distinções hierárquicas entre o povo. Excetuando-se Fernão Vasques, eleito porta-voz da população, ninguém se destaca em particular. Mas o povo em “Arras por foro de Espanha” é grandioso ao lutar e pequeno e insignificante na derrota. É para se lamentar sempre a sorte de um povo que se acomoda à ideologia dominante, que se concilia ao patriarcalismo milenar. Alcácer por Sua Senhoria!
Outros personagens aparecem ao longo da narrativa de Herculano (Frei Roy, Mestre Bartolomeu Chambão e outros) ajudando a formar os elos da intriga ficcional atrelada ao modelo da ficção romântica. Entre todos é ainda a figura ímpar da malvada rainha que se destaca. Ela é a alma da narrativa. Ela é terrível em sua vingança, mas sem ela a história do rei D. Fernando de Portugal seria outra.
Neuza Machado - neumac@oi.com.br
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