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quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

AS MENINAS DE LYGIA FAGUNDES TELLES - AS SINALIZADORAS DE UM NOVO TEMPO - 3

AS MENINAS DE LYGIA FAGUNDES TELLES - AS SINALIZADORAS DE UM NOVO TEMPO - 3

NEUZA MACHADO

Logo, nas primeiras sequências da narrativa As Meninas, o narrador(a) de Lygia Fagundes Telles, pelo ponto de vista da personagem Lorena, nos mostra as atividades políticas de Lião. Todos os seus amigos, componentes do aparelho, estão presos ou desaparecidos: Miguel, Maurício, Silvinha da Flauta, Gigi, Japona e outros. Lião (filha de pai estrangeiro e mãe baiana, de temperamento forte e agitado) simboliza as mulheres-guerrilheiras da época da ditadura, realçadas nos tablóides sensacionalistas (os jornais que comungavam com as idéias da Ditadura), os quais as mostravam como delinquentes. Lião, por este ponto de vista é uma personagem verossímil, produto da realidade sócio-substancial daquele momento da História do Brasil.

Quanto a Lorena, esta faz o gênero da moça bem comportada, sem vícios, mas, mesmo assim, é oriunda de família rica e complicada (família tradicional empobrecida), o que caracteriza a quebra da estrutura familiar (perda de identidade, perda do nome familiar), registrada nos anos de pós-guerra. Pela minha exclusiva perspectiva teórico-interpretativa, Lorena, enquanto personagem-narradora, seria o duplo mais assemelhado ao(à) narrador(a) central, o qual poucas vezes se faz presente ao longo da narrativa. Lorena é uma personagem que reproduz uma outra face daquele momento: a mudança de comportamento das jovens bem nascidas, mudança induzida e administrada pelos novos valores que se propagavam/propagaram inexoravelmente a partir dos anos de 1960.

A mais desajustada é a personagem Ana Clara: de origem humilde, sempre mentindo sobre seu passado e sempre dopada (um prenúncio do mal que viria a seguir, destruindo a maior parte da juventude brasileira). Ela deseja se casar para melhorar de vida, mas seu noivo rico só se casará com uma virgem. Nesta personagem, nitidamente apreendida como uma importante criação ficcional, provinda do imaginário-em-aberto dos pensamentos transmutativos (o que Bachelard denomina como “repouso ativado”), a escritora dos anos que abalaram a sociedade patriarcal brasileira concentra sua crítica aos preconceitos de uma sociedade historicamente machista, que, em pleno momento de liberação feminina, exigia ainda a virgindade da mulher como valor fundamental para a realização do casamento.

Em torno destas três personagens, Lygia procura tecer os acontecimentos da narrativa, mas, em verdade, esses acontecimentos são sustentados pelo interior em ebulição de quem as criou. Bachelard, em seu livro A dialética da duração, nos fala do repouso fervilhante, que antecede o momento de ascensão ao cogito(3) da consciência pura. Assim, se penso conscientemente nas páginas iniciais de As meninas, entendo que a autora estava, naquele momento de incomum inspiração ficcional, ainda, recebendo as mensagens do pensamento questionador, detonadas em mil fragmentos (cogito(2)). Assim, posso afirmar (uma vez que, historicamente, também fiz parte daquela realidade) que quem questiona a realidade brasileira dos anos da ditadura é a própria escritora — enquanto participante ativa de tal momento —, muito bem resguardada pela complexidade de sua narrativa em forma de ficção. Esta complexidade, assinalada em outras narrativas, de outros escritores do período, exemplifica a realidade caótica que prevaleceu naqueles anos malfadados, e que, ainda hoje, há muita dificuldade para reordená-la. Alicerçada por estudos semiológicos do texto ficcional (totalmente distanciada dos iniciais pensamentos estruturalistas de Roland Barthes: “o escritor é um personagem como outro qualquer...”), posso afirmar que é a escritora Lygia, enquanto testemunha ativa da história de seu país (do Brasil), que questiona os chavões antiquados que objetivavam ainda reprimir os impulsos de liberdade sadia dos jovens (nas últimas décadas que marcaram a rejeição ao regime patriarcal). A narrativa de Lygia é uma crítica ao desejo da mulher da época de se casar e adquirir segurança — heranças patriarcais —, apesar da propalada liberação feminina que marcou o início da década de 1960. A autora se vale da ficção, para dar a conhecer aos leitores do futuro os ideais de uma juventude que ainda pensava em casamento como solução para os problemas, porque, as jovens de então, apesar das novas propostas sociais da humanidade, ainda estavam ligadas às normas patriarcais que queriam rejeitar. Os conselhos e as normas de vida, ou seja, todas as leis masculinas continuaram e continuam imperando, aqui, nesta parte do mundo dito pós-moderno, ainda hoje, no final do décimo ano do Terceiro Milênio (e com o anúncio de quatro anos de governo feminino pela frente, governo de uma Presidenta, ex-guerrilheira daquele momento inglório do Brasil, hoje eleita democraticamente, mas que, não tenho dúvida, terá de enfrentar os últimos estertores do milenar preconceito contra a mulher).

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