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quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

V - MÁRIO DE ANDRADE: UM UTOPISTA? - CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA: 3o ATO (FINAL)

V - MÁRIO DE ANDRADE: UM UTOPISTA? - CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA: 3o ATO (FINAL)

NEUZA MACHADO

Mário de Andrade (em 15 de dezembro de 1942), ao final de seu texto “Café: Concepção Melodramática (Em três atos)”, chama-o de “épica”: “Eu me sinto mais recompensado de ter feito esta épica. Dei tudo o que pude a ela, para torná-la eficaz no que pretende dizer, lhe dei mesmo com paciência os mil cuidados de técnica, pra convencer também pelo encantamento da beleza. Mas duma beleza que nunca perde o senso, a intenção de que devia ser bruta, cheia de imperfeições épicas. Nada de bilros nem de buril. Pelo contrário, muitas vezes a perversidade impiedosa da idéia definidora por exagero, fiz acompanhar da perversidade tosca da involuntária imperfeição estética”.

Este texto de Mário de Andrade não pertence ao gênero Épico, assim como não pertence ao Gênero Dramático (apesar dos subtítulos). É um inquietante texto ficcional de especialíssimo valor literário, um texto incomum e precioso. Outros escritores também agiram assim, por exemplo, a Comédia (Divina Comédia) de Dante Alighiere não pertence ao Gênero Dramático, é um épico pré-renascentista. Mas que há matéria dramática no texto de Mário de Andrade, não há dúvida, assim como há matéria lírica e, em menor grau, matéria épica. O porquê de Mário de Andrade se referir ao seu texto como “épica”, somente ele poderia explicar. Deveria haver um motivo, um motivo tão singular, justamente pelo fato de ele mesmo ter escrito um outro texto, sobre o mesmo assunto, realmente poético-dramático: “Café – Tragédia Secular - O Poema”. Este sim, mesmo designado como poema (e realmente a carga lírica ali contida é imensa), possui todos os Fenômenos Estilísticos do Gênero Dramático. Enfim, o Poeta Mário de Andrade era brilhante e incomum (um grande escritor que será sempre com especial justiça reverenciado, isto enquanto houver um leitor-eleito a se interessar pelos seus textos).

E aqui continuamos com a nossa questão central: MÁRIO DE ANDRADE FOI UM UTOPISTA? APENAS SONHOU OU REALMENTE PREVIU UMA REVOLUÇÃO SOCIAL NO FUTURO DO BRASIL?


CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA

(Em três atos)


TERCEIRO ATO


DIA NOVO


O que eu chamo de “Dia Novo” é o dia da vitória da revolução que afinal acabou estourando mesmo. Chegara enfim o tempo em que o povo não tivera capacidade mais pra não se revoltar, se revoltara. Vai haver luta, briga brava em cena, que estamos num desses tentáculos de guerra com que a revolução se espraiando pela cidade convulsionada, a dominara afinal. As mulheres, no cortiço em que a cena se desenrola, são mulheres de operários, as mesmas vestimentas vivas das mulheres dos estivadores do primeiro ato. Os soldados da situação governista estarão num cáqui acinzentado bem neutro, contrastando com as cores vivas dos revoltosos. Estes, carece fazer todos eles vibrar muito no colorido. São operários, estivadores, acessoristas em vermelho, rapazes estudantes com suas blusas de esporte, uniformes civis, empregadinhos. E alguns soldados também, mas dólmãs abertos, lenço encarnado no pescoço, libertos de seus quépis.

O pano subiu vagarento num completo silêncio musical. É noite, não se divisa nada no escuro, apenas umas luzinhas vão se abrindo muito longe e talvez, no fundo uma pequena mancha rubra. Um clarão de incêndio talvez. O palco está vazio. Depois de um meio minuto decorrido assim, mais para o fundo do palco, se ilumina um lampião de rua. Luz bem fraca, desses lampiões destratados de bairro pobre, não permitindo perceber ainda o pano do fundo, jogando apenas a sua mancha branquiçada sobre o muro que lhe está na frente e separa o pátio do cortiço em que estamos, da rua que faz o fundo do palco. Como que despertado pela iluminação do lampião, um instrumento grave na orquestra principia rondando entre as tonalidades, numa voz indecisa.

Eis que bem na frente, junto à ribalta, no canto direito de cena se acende uma lâmpada e o espectador ainda pega a operária com os dois braços erguidos, no ato de fazer a ligação elétrica. E a lâmpada nova apenas ilumina esse interior de casinha, uma das várias que dão para o pátio do cortiço. Mas como a janela da casinha está aberta, uma réstia larga de luz vai morder o chão do pátio. Pátio naturalmente vazio, sem plantas, sem nenhum prazer. Bem no centro dele, junto do ponto quase, está o poço, que naquele bairro pobre e longínquo ainda não chegou a rede de água e esgotos.

Mas naquele pedaço pequeno de casinha operária, a mulher está meia inquieta, meia sem quefazer. Vem à janela e fica espiando as bulhas da noite. a orquestra, soturna sempre, está se arripiando toda de frasinhas angustiadas. A luz da casinha mostra apenas, mais para frente a mesinha do rádio, talvez um banco, e mais no fundo um colchão no chão, onde já dormem duas crianças-bonecas de três e cinco anos. Mas a mais velha, seus sete anos, está acordada, muito entretida em mexer com o rádio. Afinal consegue obter uma ligação e na soturnidade do ambiente, o espíquer agudo principia contando coisas da revolução. Meio parece parolagem o que ele diz, cheio de frases-feitas. Diz que a revolução está vencendo mas isso toda a gente diz, faz três dias que o marido dela não aparece, e esta coisa não se acaba nunca! Irritada a mulher fecha o rádio. Mas a orquestra agora já se completou, e divaga, cheia de bulhas soturnas, arripiada de frasinhas de ansiedade, um caos inquieto, de interrogações e ameaças.

É neste instante que se abre a porta duma das casinhas do cortiço, de outro lado da cena. É mais uma luz de lâmpada elétrica que morde o vazio do pátio. Um meninote surgiu, seus dez anos. Se escuta um grito atrás dele. E o menino foge atravessando o pátio todo e vindo, por instinto, na direção da outra luz, da casinha iluminada. Mas vem atrás dele a mãe correndo com angústia, o persegue, o consegue alcançar já bem próximo da janela luminosa que o chamou, o esconde nos braços, o protege com o corpo, não vá alguma bala perdida destruir aquele filho. Com o grito, a mulher da casinha se precipitou para a janela. Porém não foi ela só que escutou o grito. De todas as casinhas, as portas se abrem, jogando jatos retos de luz no pátio. E surgiram por elas mulheres, mulheres moças casadas, algumas velhas trôpegas, vêm saber, querem saber, correm todas pra junto da mulher e seu filho, estão assustadíssimas, o grito ainda as desarvorou mais naquela inquietação medonha da espera, estão juntinhas umas das outras, e se contam o seu susto, um cânone veloz, que as idéias e os sentimentos de todas são sempre os mesmos e lhes encurtam numa corrida desesperada o pensamento e o coração.

Um grito de alarma rasga a cena. Passou um homem fugindo pela rua, atrás do muro. A orquestra zanga, esbravejando muito, e em bulhas abafadas na rua, por detrás do muro, se percebe que um grupinho de homens persegue fugitivo. Há um pequeno choque de armas. Um tiro, um soluço de dor, um tombo pesado. Batem com fúria no portão do cortiço. As mulheres estarrecidas nem se mexem, como que até se unem mais, um bloco humano apavorado. Mas a menina da casinha sabe lá agora o que é revolução! Estava mexendo no rádio outra vez e consegue ligar de novo. E o rádio, como falara mesmo, enquanto espera notícias frescas pra comunicar, está no lerolero duma varsa besta, bem “hora da saudade”, em pleno choro de sensualidades fáceis. A varsa chega a tocar seu bom minuto, porque a mulher, ainda muito tomada de pavor, à janela, junto das outras, não pusera reparo na festa. Mas afinal percebe, faz um gesto de desesperada, vem, fecha o rádio, empurra a menina pra longe.

Mas corre à janela outra vez. Não vê que o barulho recrudesceu na rua, e não tem dúvida mais, a revolução chegou no bairro afastado, e agora é um grupo grande que está brigando na rua. O som parece agradável, que os soldados governistas estão mudos, mas a voz clara, entusiasmada, viril dos revolucionários vai cantando, luta cantando, com o som da música animando os corações. Mas batem com violência, batem muito no portão. A luta parece que vai cessar outra vez, cessar não, vai passar, vai continuar subindo a rua, já deve ter virado a esquina longe, o silêncio volta, mais claro, porque era visível, os revolucionários é que vinham perseguindo os situacionistas.

Tam... tam... tãtam, batidas convencionais no portão. Isso uma mulher se destaca do grupo, corre feito doida, amalucada, corre rapidíssimo até o centro do pátio, não sabe o que fazer, gira sobre si mesma na indecisão, morde uma mão com a outra e afinal se atira ao portão e abre. O abre a meio, e pelo vão entram rápido dois operários arrastando um chefe revolucionário, visivelmente um chefe, no dólmã aberto uns galões de sargento e na camisa a mancha rubra do sangue. Está gravemente ferido e vai morrer. Mas agora as mulheres perdem o medo, o esquecem, chamadas ao seu destino de mulher. Se afobam. Entram nas casinhas, saem, trazendo água, panos, uma almofada bem cor-de-rosa pra encostar o moribundo. O qual, carregado pelos dois rapazes e a esposa, veio ser sentado na borda do poço. Mas ele não tem forças mais, escorrega para o chão, enquanto a mulher o aninha no seu peito pra morrer, escorregada com ele. Os dois rapazes operários não têm mais nada que fazer ali, o chefe está em milhores mãos. Um parte rápido e a mulher que lhe vai abrir o portão, agora ficará junto deste, pra abrir si necessário. Mas o outro fica, meio esquecido da luta, é o chefe do esquadrão dele que morre. Em pé, erecto, o rapaz sofre muito e mesmo num momento, num gesto raivoso de vergonha limpa as costas da mão a lágrima. Mas o chefe se estertora na morte. Chega a visita da saúde. Para de tremer, vai erguendo o pescoço, se soergue nos braços da mulher que não existe mais pra ele, nem sabe que ela está ali, não saberá mesmo? Os sentidos são muitos. Na aparência o moribundo apenas com os olhos desmesuradamente abertos e o ouvido à escuta colhe e devora os ruídos da luta que recrudesceu na rua. Então o chefe repara no operário ali inútil, vendo ele morrer. Faz um gesto raivoso de ordem. O operário vai pra obedecer, hesita, volta, beija a testa do chefe e parte, deseparecendo pelo portão. O chefe só ergue mais o torso, dá um sorriso de esgar vitorioso e cai morto. A mulher chora soluçado sobre o corpo dele.

As coisas se precipitam. A luta está completamente generalizada por detrás do muro. As mulheres, dignificadas pela morte do chefe, reagem, se entranhando na sanha da luta. Só a menina, completamente de alma azul, está mexendo no rádio outra vez. Por vezes, em cima do muro há um reflexo de baioneta. O portão às vezes é violentamente sacudido. Os cantos se sucedem, coléricos, em fuga, vêm os gritos insultuosos dos soldados governistas, reagindo cegos, feito anões. São anões. E o canto dos revolucionários se torna cada vez mais firme e pertinaz. Não é agitado mais, nem rápido. É firme. È obstinado. È pertinaz. “Fogo e mais fogo! Fogo até morrer” cantam fugato feroz. A bulha da luta aberta é alastrada pela orquestra. Se abre, muito no longe um clarão de incêndio mais forte. E aos poucos irá, nos clarões rubros dos incêndios, se delineando a paisagem vasta do fundo, estamos num subúrbio alto e todo o pano de fundo, sem nenhum céu, é a vista da cidade. No longe, batido pelos incêndios, é o centro da cidade com seus arranha-céus formidáveis. Mas próximos, são as casa de um, de dois andares de bairro, com as janelas de perto suficientemente largas pra se abrirem, aparecer gente nelas. O portão foi de novo sacudido com ansiedade. E o soldado fugitivo surgiu no alto do muro trepado. Ao ver o grupo das mulheres, agora decididas, erectas, enérgicas, hesita. Mas sempre a um fugitivo governista um grupo de mulheres soará menos perigoso que gente bêbeda de revolução, o soldado pula no pátio. Mas logo atrás dele um revolucionário, um estudante apenas, seu blusão de esporte, tem dezenove anos, vem perseguindo o covarde, apenas com um pau na mão. Pula no pátio. Um clarão fortíssimo de um segundo ilumina toda a cena. Foi uma granada arrebentou bem perto, mas que a música, por elevação de arte, desdenhará fazer soar. E o covarde, atemorizado com a criança que lhe vai bater de pau, como ele apenas merece, atira a carabina longe e se joga de joelhos aos pés das mulheres, pedindo a vida. Elas caem sobre eles e os estraçalharão sem piedade, sanhudas. O rapazelho troca o pau pela carabina do soldado, abre o portão, se engolfa na luta, agora enfim entrevista pelo público. E o canto enorme de guerra, nota contra nota, harmônico, sem granfinagens mais de polifonias, unânime, coletivo, se alastra largo e potente pelo teatro todo. È guerra! É guerra! É revolução!... É de parte a parte fogo na nação!... É hora, é hora, é hora! Chegou! chegou! Chegou!... Uma das mulheres agarra o pau abandonado pelo estudantinho, corre ao portão, se engolfa no bolo de morte, batendo, mordendo. A menina conseguiu ligar o rádio outra vez, que agora está berrando as últimas notícias. O presidente da nação já fugiu do palácio e se escondeu no quartel da polícia. Os revolucionários já estão de posse dos Correios e Telégrafos... No Bairro Dourado os gigantes da mina do ouro resolveram morrer com muita aristocracia, bancando Maria Antonieta, marias-antonietas de borra, em grande tualhete, se embebedando que nem gambás. “Patrão! Patrão! Patrão!” invocam os soldados governista, pedindo água pra anões subterrâneos. E fogem pelo pátio, entram pelas portas das casinhas, fugindo. Os revolucionários, os perseguem sem piedade. Um novo clarão vivíssimo, mais vivo, mais próximo que o primeiro cega a cena toda, o muro cai com a explosão. As mulheres estão lutando. O rádio grita, berra, estronda. Vitória! Vitória! O presidente foi preso, o Bairro Dourado está em chamas. Os clarões dos incêndios agora clareiam toda a cidade longínqua, lambendo as paredes dos ilustres arranha-céus, as pombas enlouquecidas se agarram nas marquesas dos arranha-céus. Piedade! Piedade! Berram os soldados jogando longe as armas de aluguel. Perdão! Perdão! perdão! Mas os revoltosos, cegos, impiedosos, que piedade nada! “Café! Café! Café!” gritam desvairados, café! café! café! Vitória! Vitória! E vêm, quem são! são os palhaços, são anões subterrâneos, são apenas um magote de deputados de negro, vêm, são as primadonas da vida, vêm, junto da ribalta, entre a casinha iluminada e o poço, vê, e com gestos de primadona, botando as mãos no peitinho, caem mortos, formando um bolo de cadáveres divertido. E vêm, vêm também numa revoada, um ramilhete de aristôs de ambos os sexos, casacas de coletes, vidrilhos, garrafas de uísques, de champanha, de fine, vêm até a ribalta, do lado oposto ao dos deputados e caem mortos noutro bolo engraçado de esqueletos podres, emborcado pela última vez as garrafas desonradas.

E vem, mais até parece outra, no delírio da vitória, vem a Mãe no seu vestido vermelho estraçalhado, um seio todo à mostra, o lenço verde da cabeça caindo num dos ombros, vem completamente louca, delirando, com uma enorme bandeira e branca nas mãos. Avança, corre, seguida de muitas mulheres tão selvagens como ela, tão assanhadas, tão doidas, manchadas de sangue, rasgadas, muitos revoltosos a seguem cercando o grupo feroz. Ferozes, ferozes, todos rindo em esgares horríveis, caras numa exaltação primária, são monstros admiráveis, irracionais, faz medo olhar. Todas as janelas de fundo estão abertas, iluminadas, com gente incitando os vitoriosos. Os incêndios tomaram tanto a cidade que tudo está claro agora, violentamente clareado numa luz vermelha. A Mãe trepou no poço. Tem aos pés o chefe que morreu, tem as irmãs em torno, os revolucionários cercando, todo o palco cheio de vitória. Os camarotes, frisas do proscênio são invadidos por mais gente da vitória com suas enormes bandeiras vermelho-e-branco oscilando. Só a menina, depois que o rádio acabou de falar, já cansadinha foi dormir com os manos no colchão.

A calma desce do ar, a calma forte, já agora mais sadia e humana da vitória, e a Mãe se imobiliza. Todos são dominados pela grandeza augusta daquela mulher. E ela entoa o hino da vitória da vida, que todos repetem. Eu sou a fonte da vida, Força, Amor. Trabalho, Paz!... Os holofotes estraçalham as últimas escurezas esparsas no ar. E o povo berra imensamente vasto! Paz!... O pano cai com estrondo.

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