Quer se comunicar com a gente? Entre em contato pelo e-mail neumac@oi.com.br. E aproveite para visitar nossos outros blogs, "Neuza Machado 1", "Neuza Machado 2" e "Caffe com Litteratura".

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

VI - MÁRIO DE ANDRADE: UM UTOPISTA? - CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA: POSFÁCIO DE MÁRIO DE ANDRADE

VI - MÁRIO DE ANDRADE: UM UTOPISTA? - CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA: POSFÁCIO DE MÁRIO DE ANDRADE

NEUZA MACHADO

Mário de Andrade, em 15 de dezembro de 1942, apresentou ao público um pequeno comentário sobre a sua obra “Café: Concepção Melodramática” e chamou-a de “épica” e disse ter se sentido recompensado por tê-la realizado. Falou de suas convicções estéticas, de seu desejo de Paz (a Segunda Guerra Mundial estava em plena efervescência), de sua angústia ante a miséria em que estava vivendo o deserdado povão brasileiro. Fez premonições quanto ao futuro do Brasil que, à época, estava passando por terríveis dificuldades sócio-econômicas. A indústria cafeeira, a locomotiva do progresso brasileiro daquela época, principalmente de São Paulo, sofrera um desgaste econômico e os grandes produtores estavam indo à bancarrota. A falência comercial dos grandes produtores de café atingiu a classe trabalhadora do campo e da cidade (os trabalhadores paulistas e de outras regiões do Brasil, e trabalhadores estrangeiros aqui radicados, dependiam do café para suas sobrevivências sócio-familiares). A aguda miséria tomara conta da classe operária do povo brasileiro. Mas, os jornais e revistas da época camuflaram o mais que puderam tal ocorrência. Os inspirados escritores – ficcionistas, poetas, dramaturgos – não! Estes legaram-nos “incômodas” páginas transcendentais denunciando o grave problema.

E ainda dizem que a ficção literária é mentirosa! Dizem: “Isto é literatura!” ou “Isto é pura ficção!”. A ficção paraliterária, linear, rasteira, telúrica, sentimentaloide, com certeza é mentirosa. A Ficção-Arte, aquela que interage com o superior imaginário-em-aberto do escritor jamais poderá ser conceituada como mentirosa. Esta Ficção Incomum sai do particular da inspiração criativa para o universal, alcança tempos futuros e vai vigorosamente “incomodar” os leitores do porvir.

Mas deixemos que o próprio Mário de Andrade explique a sua obra. Vamos à leitura de seu interessante Posfácio.

Finalizo esta etapa deixando no ar a pergunta que fiz ao início das postagens sobre este texto de Mário de Andrade e nas postagens seguintes: MÁRIO DE ANDRADE FOI UM UTOPISTA? APENAS SONHOU OU REALMENTE PREVIU UMA REVOLUÇÃO SOCIAL NO FUTURO DO BRASIL?

(Aqui, vale repensar o texto de Mário de Andrade em confronto com uma pesquisa sobre a História Sócio-Econômica do Brasil desde o início da República até aos dias atuais. Para tal empreendimento, o leitor-pesquisador terá de se despejar de ideologias políticas pré-concebidas e atávicos preconceitos existenciais).


“Eu me sinto recompensado de ter feito esta épica. Dei tudo o que pude a ela, pra torná-la eficaz no que pretende dizer, lhe dei mesmo com paciência os mil cuidados de técnica, pra convencer também pelo encantamento da beleza. Mas duma beleza que não perde o senso, a intenção de que deve ser bruta, cheia de imperfeições épicas. Nada de bilros nem de buril. Pelo contrário, muitas vezes a perversidade impiedosa da idéia definidora por exagero, fiz acompanhar da perversidade tosca da voluntária imperfeição estética.

Me sinto “recompensado” eu falei, não tive a menor intenção, nem sombra disso! de me dar por feliz. Como eu tenho uma saudade incessante dessa paz, dessa “PAZ” que os vitoriosos invocaram para um futuro mais completado em sua humanidade. Eu tenho desejo de uma arte que, social sempre, tenha uma liberdade mais estética em que o homem possa criar a sua forma de belezas mais convertido aos seus sentimentos e justiças do tempo de paz. A arte é filha da dor, é filha sempre de algum impedimento vital. Mas o bom, o grande, o livre, o verdadeiro será cantar as dores fatais, as dores profundas, nascidas exatamente desta grandeza de ser e de viver.

Há-de ser sempre amargo ao artista verdadeiro, não sei si artista bom, mas verdadeiro, sentir que se esperdiça deste jeito em problemas transitórios, criados pela estupidez da ambição desmedida. Um dia o grão pequenino do café nunca mais apodrecerá largado no galho. Nunca mais os portos de todos hão-de se esvaziar dos navios portadores de todos os benefícios da terra. Nunca mais os menos favorecidos de forças intelectuais estarão nos seus lugares, porque não tiveram ocasião de se expandir em suas realidades. Não terão mais de partir, na busca lotérica do pão. Então estarão bem definidas e nítidas pra todos as grandes palavras do verbo. Terá fraternidade verdadeira. Existirá o sentido da igualdade verdadeira. E o poeta será mais verdadeiro.

Então o poeta não “quererá” ser, se deixará ser livremente. E há-de cantar mandado pelos sofrimentos verdadeiros, não criados artificialmente pelos homens, mas derivados naturalmente da própria circunstância de viver. Me sinto recompensado por ter escrito esta épica. Mas lavro o meu protesto contra os crimes que me deixaram assim imperfeito. Não das minhas imperfeições naturais. Mas de imperfeições voluntárias, conscientes, lúcidas, que mentem no que verdadeiramente eu sou.

São Paulo, 15 de dezembro de 1942.

MÁRIO DE ANDRADE

Nenhum comentário:

Postar um comentário