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terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

IV - MÁRIO DE ANDRADE: UM UTOPISTA? - CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA: 2o ATO - 2a CENA


IV - MÁRIO DE ANDRADE: UM UTOPISTA? - CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA: 2o ATO - 2a CENA

NEUZA MACHADO

Nesta Segunda Cena do Segundo Ato (lembrem-se: apesar de uma certa semelhança com a criação literária própria da dramaturgia, o texto não pertence ao Gênero Dramático, pertence ao Gênero Narrativo em Prosa/Ficção-Arte), Mário de Andrade denuncia criativamente o ápice da pobreza do povão brasileiro dos anos trinta e quarenta do século XX (fosse na cidade ou no campo). A matéria dramática (repito: não é gênero dramático) aliada a uma altíssima criatividade ficcional interage catarticamente (catársis indireta) com a sensibilidade/racionalidade do leitor-crítico de hoje, um leitor mais apto a perceber os desmandos políticos-sociais de tempos pretéritos (infelizmente, em relação à atualidade, não são todos os brasileiros e leitores-críticos que, concientemente, percebem as arapucas sócio-políticas que almejam o retrocesso em benefício de poucos; infelizmente, ainda há os que lêem pela cartilha da incompreensão e do preconceito). É bem verdade que a questão da pobreza no Brasil ainda continua, diminuiu consideravelmente, mas ainda continua. Mesmo assim há uma grande diferença em relação ao passado: hoje, há a possibilidade de lutar e vencer e extirpar este cancro político-social que envergonha os que têm consciência desta grave calamidade publica.

Mas aqui continuamos com a nossa questão central: MÁRIO DE ANDRADE FOI UM UTOPISTA? APENAS SONHOU OU REALMENTE PREVIU UMA REVOLUÇÃO SOCIAL NO FUTURO DO BRASIL?


CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA

(Em três atos)


SEGUNDO ATO - SEGUNDA CENA


O ÊXODO

São os ritmos de uma marcha pesada, arrastada, fatigadíssima já. Sons tristes, sons lastimosos, se diria de marcha fúnebre. Estamos numa dessas estaçõezinhas de trem-de-ferro, postadas nos vilarejos de três, quatro casas, pra serviço de embarque da grande indústria do café. Até lhe puseram o nome “ESTAÇÃO PROGRESSO”, que se lê na tabuleta de início da plataforma, que começa no meio do palco. A estaçãozinha mesmo quase não se vê. Apenas, na direita da cena, o princípio do edifício e quase meia porta apenas. É a tardinha. Pra cá da plataforma e do edifício passa a linha do trem. No lusco-fusco rosado, os trilhos ainda colhem um resto mais franco de luz. A paisagem do fundo ainda se percebe, cafezal, cafezal, o cafezal infindável, no ondular manso dos morros. Nada mais.

Só aquela marcha pesada que vem chegando. Primeiro chegam os moços. São os colonos, aqueles mesmos colonos da famosa Companhia Cafeeira S. A. que vimos despedidos no primeiro ato. Na frente vieram os moços, mais fortes, que podem andar sem a ajuda de ninguém. Rapazes e raparigas, cada qual vem por si, e param por aí, na espera do trem de segunda classe, que ninguém sabe a que horas será composto. Não há mais vagões de segunda classe. É que de todas aquelas terras felizes, agora tornadas invivíveis, o povo está fugindo. Onde vão parar? São estes os que vão parar desocupados nas esquinas das ruas, no parapeito dos viadutos, nos crimes da noite urbana, roubando quando podem esmolando, matando pra roubar. São os criminosos. Não os criminosos-natos, são os criminosos feitos.

Pois os moços se arrancharam por aí, na espera do trem. Brincam, são moços. Os namorados aproveitam pra namorar, se separando aos pares. Mas os outros passam o tempo com brinquedos ásperos de colonos, se atiram coisas com intenção de machucar um pouco, sem machucar não é brinquedo, meio que se generaliza esse brinquedo, até que aquela rapariga mais perigosa teve a idéia milhor. Tirou da trouxinha um alimento, uma última banana que toma o cuidado de mostrar bem. Todos ficam logo desejando e ela atira a banana bem no meio da cena. Isso, os rapazes todos se atiram sobre a fruta boa, até os namorados se esqueceram que amavam. É aquele bolo humano, pernas, braços, tombos, se mexemexendo no chão. Um consegue a banana e com brutalidade se destaca do grupo, triunfante. Vai pra comer, mas ainda com tempo se lembra da proprietária. Lhe põe a banana na boca que ela morde com vontade, enquanto ele devora o resto. Ninguém mais está com vontade de brincar. Uns sentam no chão, outros na plataforma. Fazem silêncio, mudos, pensativos, e se escuta outra vez o ritmo lamentoso da marcha, na orquestra.

Agora são os casados que chegam. Estes vêm aos pares, braços dados, se ajudando. E também se ajeitam por aí, sem mais nenhum ar de brinquedo. Não sabem brincar mais. O coração está apertado com aquela solução de vida. Pois não venceram tantos trabalhos, tantos sacrifícios, não aguentaram tantas omissões? Agora já estavam bem regularmente arranjados na vida. Tinham enfim conquistado as graças daquela cidade terrível, postada como sentinela impiedosa na abertura dos caminhos de serra-a-cima, dona das sete doenças do frio, não deixando ninguém passar. Mas eles tinham conseguido vencer a ciumenta de serra-acima e então ela os tomara pelas suas próprias mãos e os trouxera para aqueles chãos felizes. E eles tinham amado tanto aqueles chãos. Ali a vida era boa, e trabalho sadio, muitos enriqueciam e se passavam para o bando dos gigantes... Eles amavam aqueles chãos e quem disse pensar em partir outra vez! Haviam de viver e de morrer ali. Mas aqueles chãos felizes e a cidade legítima foram traídos, a ruína chegara, o café apodrecera no galho. E como o fumo ácido afugenta os insetos de beira-rio, eles também partiam de seus chãos, afugentados pela fumaça torva do café queimado.

É quase noite já. A cólera ronda aquele troço de infelizes. O ódio aos gigantes da mina fareja sangue no ar. Tudo está escuro, muito escuro já. Apenas na fímbria do horizonte uma faixa encarnada violenta denuncia a existência de um sol. A orquestra marcha cada vez com mais dificuldade, se arrasta aos socos pesadíssimos de pés exaustos. Muito longe se escuta um rumor estranho, feio. Parecem uivos lamentosos, parecem, choros de morte. E o rumor aumenta pouco a pouco, aumenta. Agora se distingue bem: são uivos, são lamentos humanos, são gritos horríveis de imprecação. E os colonos tapam os ouvidos, escondem os olhos, se agitam, não suportam aquela visão horrível que vem chegando. E vem chegando os grupos de velhos e crianças. Parecem monstros, pencas de monstros, aos três, aos quatro, se ajudando em grupo, que ninguém pode consigo mais. O chefe da Estação Progresso surgiu da meia porta. Atravessa a cena, e bem aqui na frente, na ribalta, pendura um cartaz que trouxe e lhe põe uma lâmpada por cima, pra que todos saibam que

TREM DE SEGUNDA CLASSE NÃO HAVERÁ MAIS

É o que diz o cartaz. E naquele estrondar de uivos, de lamentos lacinantes, os grupos vão atravessando a cena toda e desaparecem. Ritmo cadenciado, lento, aos empuxões pesados. Ritmo de coisa que marcha por desgraça, ritmo de supliciados. E o pano cai ainda mais lento, como sem cair, enquanto os grupos marcham, se arrastam, se morrem naquela marcha monstruosa.

(Amanhã postarei o Terceiro Ato — DIA NOVO — deste inquietante texto de Mário de Andrade)

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