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sábado, 27 de novembro de 2010

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO – “O GRANDE SONHO QUASE VIVIDO”

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO – “O GRANDE SONHO QUASE VIVIDO”

NEUZA MACHADO

"Quer queira quer não, o romancista revela o fundo de seu ser, ainda que se cubra literalmente de personagens. Em vão ele se servirá "de uma realidade" como uma tela. É ele que projeta essa realidade, é ele sobretudo que a encadeia. (Gaston Bachelard)


Mário de Sá-Carneiro (Portugal, 1890 / França, 1916), poeta e ficcionista, participou, ao lado de Fernando Pessoa, Almada Negreiros e outros importantes escritores, da primeira fase do chamado Modernismo Português.

As reformulações no âmbito da literatura portuguesa, a partir da revista Orpheu, refletiram de certa forma a realidade beligerante da Europa (Primeira Guerra Mundial - 1914-1917), uma caótica realidade que atingiu também, interlinearmente, outros pontos da Terra. Entretanto, diferente dos poemas revolucionários, propostos pelos poetas futuristas de Paris, liderados pelo italiano Marinetti (entre os anos de 1909 a 1910), nas inovações poéticas do grupo português não se realçou a chamada rejeição aos valores literários do passado. Ao contrário, evidenciou-se um saudosismo diferenciado, realizado por meio de inovadoras operações de como apreender a poesia (certamente uma nova orientação formal no campo da ação poética), mas, internamente, conservando uma indelével ligação com o glorioso passado de Portugal.

Mário de Sá-Carneiro, enquanto poeta e escritor de grande sensibilidade, deixou transparecer em seus poemas e em sua ficção a própria inadequação à realidade beligerante e ameaçadora que o circundava. Entre os poetas de sua geração, foi o que mais sofreu a dor da “perda da identidade” (característica primordial do homem do século XX), a falta de domínio do nome familiar reverenciado, a perda da antiga aura dos heróis portugueses, desbravadores de inóspitos mundos (“E mãos de herói, sem fé, acobardadas, Puseram grades sobre os precipícios...”).

O poema “Quase”, transcrito abaixo, poderá revelar-lhes muito mais sobre este grande poeta da primeira fase do Modernismo Português:



QUASE

Mário de Sá-Carneiro

Um pouco mais de sol — eu era brasa,
Um pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim — quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
— Ai a dor de ser — quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

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