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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

III - MÁRIO DE ANDRADE: UM UTOPISTA? - CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA: 2o ATO - 1a CENA

III - MÁRIO DE ANDRADE: UM UTOPISTA? - CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA: 2o ATO - 1a CENA

NEUZA MACHADO

“É bem difícil explicar o que teria levado o autor à invenção subitânea deste “Câmara-Ballet” que, até pelo nome, já denuncia a sua intenção de vaia. É possível se crer, se deve crer numa humanidade tão civilizada que permita a existência de câmaras eficazes? E afinal são sempre câmaras a caximbada dos Velhos na tribu e as salas improvidadas dos sovietes.”

Nestas palavras do próprio Mário de Andrade (e nas seguintes do trecho que vamos apreciar) está a visão do Socialismo Político que lhe foi encalcada. E até aqui ainda não há como detectar a sua real posição política. À época, dizia-se às crianças que os Comunistas “comiam criancinhas”. O medo do Comunismo-Socialismo, disseminado pela política contrária do Capitalismo Selvagem, impedia aos brasileiros ricos e pobres do entre-guerras do século XX de perceberem a terrível realidade: a disseminação de uma propaganda de medo, promovida pelos Poderosos Capitalistas contra as idéias do Socialismo, já em andamento, era o meio seguro de escravizarem cada vez mais os mais necessitados. Sabemos que Mário de Andrade foi amigo de políticos-capitalistas e jornalistas poderosos. Entretanto, aqui não nos importam as suas convicções políticas. Se ele era ou não contra o Socialismo e favor do Capitalismo e deixou isto claro em seus textos, o real de seu direcionamento político não invalidará a nossa questão central: MÁRIO DE ANDRADE FOI UM UTOPISTA? APENAS SONHOU OU REALMENTE PREVIU UMA REVOLUÇÃO SOCIAL NO FUTURO DO BRASIL?


CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA

(Em três atos)


SEGUNDO ATO - PRIMEIRA CENA

CÂMARA-BALLET


É bem difícil explicar o que teria levado o autor à invenção subitânea deste “Câmara-Ballet” que, até pelo nome, já denuncia a sua intenção de vaia. É possível se crer, se deve crer numa humanidade tão civilizada que permita a existência de câmaras eficazes? E afinal são sempre câmaras a caximbada dos Velhos na tribu e as salas improvidadas dos sovietes. Por isto, a intenção de “Câmara-Ballet” se limita, é vaia, mas por tudo quanto de falsificação e de ridículo, os anões subterrâneos do servilismo, fizeram das câmaras o que a história conta. Ineficientes, traidoras e postas ao serviço dos chefes.

Estamos em plena farsa, e até o pano “farseia”, não querendo subir, caindo de repente. Os personagens são vários, pois o enredo cai em cheio numa sessão de câmara de deputados. A mesa da presidência está na boca da cena, bem junto do ponto, e por trás dela se vê as bancadas numa inclinação leve, de maneira que o presidente, vice, e os secretários da Mesa dão as costas ao público, ao passo que os deputados nos encaram de frente. E mais ou menos a meia altura da cena, atrás, estão as galerias da assistência pública. Quando a reunião não é secreta.

A sala de sessões é bem chique, todos os móveis, mesa, bancada, parapeito das galerias, até o chão, tudo branquinho, d’um branco alvar. Ao passo que todos os personagens da câmara estão de preto, Mesa e deputados de sobrecasaca, e um plastron gordo com uma enorme pérola branca de enfeite. Os serventes também de preto, com os botões de prata no dólmã. E os jornalistas? Si os serventes são cinco, de pé, do lado direito da cena, na mesma linha da Mesa, na mesma linha ainda da Mesa, mas do outro lado, os jornalistas também são cinco, sentados em cadeiras enfileiradas, uma atrás da outra. Sucede que as cadeiras jornalísticas estão de perfil pro público, não deixando por enquanto ler o título do jornal a que cada uma pertence, por honra e graça inusitada e inusada dessa força enorme e tão facilmente servil que é o jornal. Ora os títulos dos jornais da terra, que se erguem do encosto das cadeiras, são “O Patativa”, “Diário da Luz”, “O Clarim”, “O Presidente” e o “Jornal das Modas”. Os jornalistas também se vestem seriamente de preto, mas não usam sobrecasaca mais, são modernos. Usam um palitozinho curto, calças apertadas ainda mais curtas acabando um palmo acima do tornozelo, deixando ver as lindíssimas meias brancas de seda e os escarpins de verniz. E quanto a gravatas airosamente, os jornalistas só aceitam enormes gravatas cor-de-rosa, com um laço borboleta bem pintor, são lindos. Francamente, esse tal de jornalista é um amor.

Como se vê, tudo é branco e preto. O que vai variar de colorido muito é o pessoal das galerias, que será o mais berrantemente colorido possível. Repete-se as camisas-de-meia dos estivadores, o azulão proletário, dólmãs, quépis, o cáqui de um soldado-raso. Mas as mulheres, muitas e também com tons vivos, serão fazendas lavradas, fazendas de ramagens, fazendas “futuristas” com desenhos abstratos de muitas cores berrantes. Nada de tecido duma cor só, logo se perceberá porque.

E da mesma forma que o presidente e o Vice, alguns personagens têm seus nomes distintivos. Tem, por exemplo, Deputado do Som-Só, o Deputado da Ferrugem, o Deputado Cinza e o Secretário Dormido.

Quando ergue o pano, está falando o Deputado do Som-Só, um escolado velhusco, que já sabe que se falando num som só, todos dormem e as falcatruas se fazem com mais facilidade. Tem o discurso escrito num papel gigantesco, difícil de manejar de tamanho. Como era de esperar todos dormem, toda a Mesa, os vários deputados, todos os jornalistas, e até um único operário que está nas galerias e ronca de papo pro ar. Só os serventes à direita é que parolam suas intriguinhas de ofício, problemas de gorjetas, intercâmbio de amantes de deputados, chamados de magnatas e banquetes oficiais.— a vida deles. É o Quinteto dos Serventes.

E este é que acaba musicalmente porque o Deputado do Som-Só não acabaria nunca, si não fosse entrar o Deputadinho da Ferrugem, muito novo ainda, filho de chefe político não há dúvida, com ar de quem descobriu a pólvora.

Não vê que tendo estudado direito e se formado em nove anos rápidos, percorreu o Corpus Júris e toda a legislação existente, e com assombro (lá dele) descobriu que ainda ninguém não legislara sobre o ínclito fenômeno da ferrugem nas panelas de cozinha. E decidiu salvar a pátria. Se fechou seis meses a fio num cabaré, só saindo pra comer dinheiro público na câmara, e escreveu um discurso de embolada maravilhoso sobre o dito assunto. Ele é que entrou pimpante, na emoção gavotistica da estréia felicíssima que os jornais já elogiaram. Está claro, durante todo o bailado é um entra-e-sai de deputados que não se acaba. Ao passo que as galerias vão se enchendo pouco a pouco e quando arrebentar a bagunçona, estará repleta.

Pois o Deputadinho da Ferrugem está louco pra falar, mas quem disse o Deputado do Som-Só dar fim ao lerolero. Agora todos acordaram, menos o Secretário Dormido, sempre de bruço, sonhando sobre a mesa. O resto não, quer escutar a estréia do Deputadinho da Ferrugem. Os jornalistas aspiram tomar muitas notas. Pegam do chão, ao lado, os seus maços de papel pra notas, que pelo maço e o tamanho servem também pra outra coisa, e os lápis, que lápis? desses gigantescos, feitos pra anúncio nos mostradores das papelarias. Mas vamos ter o discurso, porque entrou um polícia muito lindo, até polainas brancas, bateu no ombro do Som-Só e fez pra ele parar. Ele para que é só pra isso mesmo que ele existe e principiará dobrando o discurso, dobrando que mais dobrando até o fim do “Câmara-Ballet”.

O Deputadinho da Ferrugem fala enfim. Fala bem, fala verdade, e é tão gostosa a fala “andantino grazioso” dele, que entre aplausos e gostosa satisfação toda a câmara entra no movimentinho suave se movendo pendularmente de cá pra lá, de lá pra cá. Menos o povo das galerias que procura saber o que se decide da vida. Um operário não se contém afinal. “Praquê falar em ferrugem de panela, si não tem o que cozinhar!” ele estoura. Outros querem que se trate do problema do café. Os deputados se contrariam muito, o presidente bate no sinão enorme. Ora, no princípio do discurso da ferrugem, o Secretário Dormido, que já estava cansado da posição, se aninhara no colo do secretário seu vizinho e lhe dormira no ombro. Meio que acorda com a baguncinha do povo, muda de posição outra vez. Se ajoelha no chão, com a bunda nos calcanhares e se debruça no assento da sua própria cadeira, aí pondo, sobre os braços, a cabeça dormida.

Ora nos bastidores estava esperando que o discurso acabasse o Deputado Cinza. Não que pretendesse fazer o discurso também, não vê que ele ia se comprometer. Mas o Deputado Cinza é desses uns que gostam muito de estar bem com todos. Eu cá sou pelo que é justo, como eles dizem. D’aí se vestirem completamente de cinzento, que é a cor neutra por excelência. Pois do que mais ele havia de se lembrar! Industriou bem (pensou que industriou) a Mãe, uma colona cheia de filhos, fez ela decorar um discursinho bem comodamente infeliz, contando que os filhos tinham escola dada pelo governo, roupa de inverno dada pela Liga das Senhoras Desusadas e muito feijão com arroz que o Ministério da Abastança iria plantar no ano que vem. Remédio então era mato, remédio, dentista, calista, manicura, boninas, water-closet e balangandãs. A Mãe decorou, decorou, custava decorar aquele final dizendo que a vida estava triste e o Governo era muito bom, não havia jeito de lembrar as palavras! Mas enfim estava ali nos bastidores com o Cinza, esperando muito nervosa, diz-que era pra ela falar naquele meio de tanta gente elevada tão limpa. De forma que quando, amedrontado com a baguncinha o Deputadinho da Ferrugem acabou, uf! ela não quis entrar e o Deputado Cinza teve que arrastar a infeliz pelo recinto lustroso da câmara. E a Mãe entra chamando a atenção de todos. Coitada, botou o único vestido completo que ainda possuía. É aquele vestido todinho encarnado vivo, duma cor só. Na cabeça, escondeu os cabelos destratados no lenço de sentineta verde vivo. E traz consigo os três filhinhos que não tinha com quem deixar. Os dois maiores, que andam, se agarram horrorizados na saia dela. O recém-nascido lhe dorme no braço, envolto no chale amarelo cor-de-ovo. E de cor-de-ovo estão também os outros dois, fazendinha que sobrou de incêndio. E a Mãe com os filhos botam a cor do alarma no recinto. Que será! que não será! E o Deputado Cinza gesticulava pra ela: Fala, diabo de mulher! Mas a Mãe estava horrorizada, queria, pedia pra sair, fugir dali. “Fala, diabo!” que ele gesticulava.

Então a Mãe se viu perdida. Numa espécie de delírio que a toma, se evapora todo o discurso decorado. Sem resolver, sem decidir, sem consciência, sem nada, apenas movida por um martírio secular que a desgraça transmite aos seus herdeiros, ela se põe a falar. Não são dela as palavras que movem-lhe a boca, são do martírio secular. São palavras duma verdade não bem sabida, não bem pensada, são palavras bobas. Muitos deputados vão-se embora pra não perder tempo. Outros adormecem. Falar nisso: o Secretário Dormido mudou de posição outra vez. A cadeira estava incômoda decerto. O fato é que ele a empurra e sempre de joelhos, põe os braços no chão e sobre eles descansa a cara dormida agora se amostrando ao público, e a bunda ao vento, erguida como parte principal dos secretários de câmaras.

Bom, os demais não estão muito se amolando com a fala da Mãe, só as galerias lhe devoram as palavras. E aos poucos, deputados, jornalistas, serventes, a Mesa, todos esses anões subterrâneos do servilhismo, utilizados pelos gigantes da mina de ouro, todos, pra não escutar tanta besteira, se botam recordando o maravilhoso discurso sobre a ferrugem das panelas de cozinha. E o mesmo ritmo balangado de antes volta aos poucos e afinal se afirma franco, quando as palavras alucinadas da Mãe se tornam insuportáveis de ouvir. Tudo se mexe, tudo cantarola, tudo dança na câmara. Os jornalistas montaram a cavalo em suas cadeiras e com pulinhos vão formando roda, afinal mostrando os títulos dos jornais ao público. Os serventes também dançam de roda, se dando as mãos. O que fez o presidente? É que, não podendo mais escutar os gritos lamentosos da Mãe, mas correspondendo a ele, a galeria, realistamente se move, se revolta, insulta, berra, diz nomes-feios com razão. E o presidente, movendo o sino engraçado, não vê que se esqueceu da vida e está brincando com o sino, jogando ele no ar. Também o Deputado Cinza, quando viu a bagunçona estourar, disse consigo: Bem, cumpri com o meu dever, agora lavo as mãos. Lavou mesmo. Lavou na água astral do cinismo, e para enxugá-las, puxou do bolso aquela espécie de lenço de Alcobaça, lenço não, lençol vasto, de todas, mas todas as cores. De todas as cores.

Mas isto não se aguenta mais, é o cúmulo! Onde se viu agora o povo querer ter opinião! Onde se viu nunca as Mães falarem! Aqui é que entra o destino precípuo da polícia dos gigantes. Isso entram corvejantes nas galerias uns policiais, tiram os sabres com realismo cru, e principiam chanfalhando o povo. Como reagir, ainda somos poucos, a coisa inda não se organizou num destino unânime. Ainda não surgiu do enxurro das cidades, o Homem Zangado, o herói moreno que os há-de anular na errupção coletiva final. E o povo fogem, as galerias se despovoam, enquanto mais dois polícias que entraram no recinto da câmara, levam presa aos empurrões aquela doida. O pano cai com violência, sem achar mais graça nenhuma na farsa.

(Amanhã postarei a 2a Cena do Segundo Ato — O ÊXODO — deste inquietante texto de Mário de Andrade)

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