1 - NO MUNDO DOS SONHOS DIMENSIONADOS: A LONGA PONTE DE TRONCO DE BRAÚNA E O LARGO RIO INFINITO
NEUZA MACHADO
Na época do meu primeiro sonho, que quero relatar, eu já havia completado sete anos de vida no final do ano anterior. Meus pais moravam em uma casa de beira de estrada, no sopé da Serra dos Perons (uma montanha agrária que pertencia às inúmeras ramificações de uma grande família, de origem italiana, cujo patriarca chamava-se Alexandre Peron). Era uma casinha nova, de meeiro, localizada no sítio do patrão de meu pai (o senhor Delilo Coutinho, irmão daquele famoso magnata do futebol brasileiro dos anos cinquenta e sessenta, o empresário Giulite Coutinho, anos depois presidente da CBF), casinha esta que se localizava na entrada da cidade de Santa Luzia do Carangola de Minas Gerais (onde atualmente existe um Anel Rodoviário, em bifurcação, pois, do lado direito, a estrada se direciona ao Município de Divino (antigo Divino de Carangola), e, do lado esquerdo, atravessando o rio Carangola, a mesma estrada vai a direção à Varginha e outras localidades adjacentes).
A mudança da casa velha (do Bairro de Santa Maria, onde eu nasci), uma casa antiga próxima ao grande Pontilhão de Ferro da Linha Ferroviária da Princesa Leopoldina (um pontilhão, precioso, fabricado na Bélgica, e que se localiza, ainda hoje, nas imediações da já destacada casa velha) para aquela, a daquele momento, acontecera naqueles dias, próximos ao dia do acontecimento desta minha narrativa. Mamãe diligenciava, muito ocupada com a arrumação de nossos poucos e usados móveis, em faina constante, trabalhadora e, por incrível que pareça, inigualável na cozinha (logo, a mamãe!), e estava, naquele momento, atarefada com as panelas de ferro, pretas, sem polimento algum, e com o cozimento das refeições, e muito feliz na recente residência.
A bem da verdade, mamãe não era lá muito fanática por arrumação de casa e muito menos fanática com o polimento das panelas e horário de refeições. O fogão de lenha de nossa casa só fazia fumaça acionado por seu dilatadíssimo estômago. O que eu quero dizer é que o horário das refeições, lá em casa, naquela época e em épocas posteriores, não acompanhava o tique-taque do relógio. Comíamos na hora em que mamãe sentia fome.
Então! Então, naquele dia era um Domingo. Mamãe estava a receber a visita de sua irmã caçula, a tia Fisica (que iria passar uns tempos em nossa casa). Mamãe matava algumas galinhas de nosso terreiro; retirava carne de porco das latas de gordura (carne temperada e cozida, para durar por algum tempo); catava feijão para cozinhar em um grande panelão, cuja trempe se localizava em um fogareiro, do lado de fora da casa; e outras atividades mil, para preparar um lauto jantar para nossa visita.
Mas, com todo esse movimento, o jantar estava demorando a ficar pronto. Por que? Porque as duas conversavam, e conversavam, e conversavam, e a esperada janta não saía de jeito nenhum.
A janta, naquele tempo, era servida por volta das dezesseis horas, ou melhor, deveria ser servida nesse horário, mas nem sempre assim, se a cozinheira fosse semelhante à mamãe. O almoço, como era o costume daquela época, nas cidadezinhas do interior de Minas Gerais, era servido às oito horas da manhã (isso, se mamãe acordasse antes das oito!) e o café da tarde, geralmente, por volta de meio-dia, mais ou menos. A janta, por volta das quatro da tarde. Às vinte horas, pontualmente, era servida a ceia, enquanto ouvia-se a novela radiofônica (aquela que substituiu a incomparável novela de rádio O direito de nascer, adaptação em português de um dramalhão mexicano de uma famosa novelista chamada Glória Magadan). O motivo: dormíamos cedo, naquela época, só depois da novela do rádio.
(Esquecia-me de dizer que os adultos só tomavam café puro ao acordar, para iniciarem a lida. Somente as famílias muito ricas tinham o costume de um lauto café da manhã, com mesa posta e tudo. Evidentemente, não era assim em nossa casa).
Só que, em nossa casa, a ceia das oito horas da noite coincidia, quase sempre, com o horário da janta. É bom recordar o fato de que o papai saía cedo para o trabalho. O nobre tomava um cafezinho requentado, antes de sair de bicicleta em direção ao serviço, na cidade, como funcionário-guardião do Armazém de Cereais do Seu Delilo Coutinho. Mas, naquele dia, era domingo. Eu e o papai esperávamos pacientemente a janta, que estava custando a sair das pretas panelas de ferro não-polidas. Mamãe conversava e conversava com a tia Fisica (por nome Yolanda, na certidão de batismo).
E o caso estranho que quero relatar foi assim:
Devia ser umas cinco horas da tarde. Cansada de esperar pela janta (que estava custando a ser servida por mamãe), recostei-me em um travesseiro de paina, na caminha de solteiro que ficava em um quarto-saleta próximo à cozinha. Papai já estava ressonando no quarto do casal, o quarto da frente. O dia estava meio frio. Agasalhei-me com uma cobertazinha fuleira (cobertura de pobre, também chamada de coberta-bicicleta, não sei por quê?), e envolvi-me em meus sonhos infantis, próprios de uma menina de sete anos. Não tardei a pegar no sono. E comecei a sonhar. E o sonho parecia real.
De verdade, havia um largo terreirão em frente a tal casinha da estrada, aquela em que morávamos. Depois da estrada de rodagem (uma ramificação rudimentar da BR116-Estrada Rio-Bahia passando pela cidade de Carangola), do outro lado, havia uma espécie de declive acentuado, arborizado, e, lá embaixo, se localizava um grande casarão de fazenda, já muito velho e caindo os torrões das paredes e podres as tábuas do assoalho. (Nesse casarão velho, de propriedade do senhor Delilo Coutinho, moramos também, posteriormente; hoje, a Casa-Fazenda já não existe e ali se localiza o tal Anel Rodoviário, passando um viaduto por cima do rio, e, com isto, distribuindo a estrada em várias direções). Naquele tempo e até hoje, no local, havia muitas árvores frutíferas, e, para completar o cenário de pura maravilha, lá em baixo, próximo ao velho casarão, passava o rio Carangola. Ali, naquele lugar, passei maravilhosos momentos quando criança.
Mas, como eu estava contando, a janta estava demorando a sair do fogão para nossas barrigas famintas. E mamãe conversava, conversava, conversava com a tia Fisica (e mastigava, mastigava, mastigava, alguns pedaços de carne de porco e carne de frango e provas de comida, assim como também a Tia Fisica). E a Tia Fisica rememorava todos os casos acontecidos na roça, contando todos os episódios tim-tim-por-tim-tim. O papai dormia, com fome, coitado!, na cama grande do quarto da frente. E eu cochilava com fome também no quartinho da sala.
De repente, o rio Carangola já estava diante do grande terreiro de nossa casa, já não havia estrada de rodagem coisíssima nenhuma; em baixo, já não existia nenhuma casa-fazenda caindo aos pedaços, não senhor!, nem mesmo árvores frutíferas, nem nada. Somente um largo rio (que já não era o rio Carangola), parecendo um imenso braço de mar de tão grande, separando a nossa casinha sem magnificência da visão de uma brilhante cidade, que ficava lá, longe, diluída na paisagem e nos reflexos do grande rio, extenso... extenso... extenso...
Olhei maravilhada a aparição, e, imediatamente, surgiu uma longa e grossa tora de braúna, presa nas duas margens como se fosse uma longa longa longa ponte, unindo a minha casinha de roça à grande cidade, que se avistava ao longe.
Pela minha perspectiva infantil, a cidade longínqua era grandiosa. Vi casas e ricos sobrados, maravilhosamente iluminados. E era dia. O sol os iluminava. E eu quis atravessar a ponte de tora de braúna e ir para o outro lado. E eu era uma menina de sete anos, bem caipirinha, bem roceirinha, bem o adjetivo inferiorizado que você quiser (não se esqueça; não conhecia nenhuma grande cidade!).
Comecei a caminhar, procurando equilibrar-me em cima da tora que ficava sobre o amplo rio. Caminhei até à metade. No meio do rio, depois de ter caminhado por um longo tempo, sempre me equilibrando, comecei a sentir frio e medo. Minhas pernas infantis já não colaboravam com a minha ânsia de atravessar o rio e ir para o outro lado, onde se localizava a magnificente cidade. As pernas falharam, eu escorreguei no liso da tora, e me vi sentada, com as pernas abertas, sobre a tora de braúna, com muito medo de cair naquelas águas claras e tranqüilas. O rio era um espelho tranquilo. Não vi águas revoltas. Sentada (montada, com as pernas abertas ― em forma de ípsilon de cabeça para baixo ― sobre a tora), eu procurava movimentar-me, por certo sentada, dando impulso, elevando o corpo, sempre para frente. Quase chegando ao outro lado, vi-me em apuros, prestes a cair naquelas águas tranquilas e profundas. Em desequilíbrio, eu murmurava: ui!, ui!, ui!, olhando sempre em direção à Grande Cidade.
Não cai. E não voltei para trás, pois acordei.
Acordei com a mamãe me perguntando: “O que ocê tá sentindo, Neuza? Por que cê está gemendo ui!, ui!, ui!?”. “Não estou sentindo nada não, mamãe! Estava sonhando um sonho bão demais da conta! A senhora me acordou, antes d’eu chegar à cidade! Já tem janta, mamãe?”. “Que janta o quê? Já é de manhã. Ocê dormiu sem janta. Um sono só, desde quatro da tarde. Não quis acordar ocê não. Ocê vai mais é tomar café, menina!, e ir logo p’ru Grupo Escolar, porque hoje já é segunda-feira!
Anos depois, já estávamos morando na Grande Cidade do Rio de Janeiro. Em 1991, atravessei o Oceano Atlântico, sobre uma ponte de tora de braúna imaginária, pois olhava aquele marzão infinito da janelinha do avião. Viajava feliz, para conhecer algumas Cidades da Europa. Em dezembro de 1995 e todo o ano de 1996, morei em Manaus, e pude ter a exata idéia da grandiosidade do rio Amazonas, visualizado em sonho aos sete anos de idade. Exatamente igual. Em 1997, já de volta ao Rio de Janeiro, eu atravessava, todas as quartas-feiras, a Ponte Rio-Niterói, para trabalhar em São Gonçalo, como professora universitária. Nas idas e vindas, eu revivia o meu sonho dos sete anos. Tanto do lado do Rio de Janeiro quanto do lado de Niterói a minha perspectiva era sempre a mesma: uma longa ponte, um imenso rio-mar, e, bem próxima, uma magnificente cidade. Tudo exatamente igual.
Até hoje, as grandes cidades, as longas viagens e as intermináveis aventuras continuam em meus sonhos de todas as noites. Os caminhos da roça, também. Graças a Deus! Felizmente, não perdi contato com as minhas raízes! Continuo direcionando os meus sonhos noturnos (manipulando-os criativamente!), sempre para frente, com o meu pezinho infantil ainda bem plantado em minhas emoções primordiais. Sem medo de ser feliz! Graças a Deus! Subidas íngremes (fáceis ou difíceis); tapetes sendo puxados violentamente sob os meus pés com asinhas douradas; intermináveis elevadores, panorâmicos; longas estradas (de carro, ônibus, a pé, etc.); escadas infindas (sempre para cima, sim, senhor!; às vezes com dificuldade, outras vezes, com muita facilidade). Sonhos grandiosos! Sim senhor! Realidade comum! Muito trabalho! Pouco dinheiro! Muita alegria! Tristeza, jamais! Vida saudável! Muita riqueza interior, sim senhor! Obrigada, meu Deus! Amém!
Nenhum comentário:
Postar um comentário