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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

6 - SOBRE O PAULISTANO RIO TIETÊ DE MÁRIO DE ANDRADE - 3

6 - SOBRE O PAULISTANO RIO TIETÊ DE MÁRIO DE ANDRADE - 3

NEUZA MACHADO

Vamos continuar a ler mais alguns trechos deste longo poema que nos foi legado por Mário de Andrade, quando nos anos quarenta (lembrem-se sempre das datas: anos de 1940) meditou sobre o triste “curso das águas” do Rio Tietê:


A MEDITAÇÃO SOBRE O TIETÊ

Mário de Andrade


Vamos, Demagogia! eia! sus! Aceita o ventre e investe!
Berra de amor humano impenitente,
Cega, sem lágrimas, ignara, colérica investe!
Um dia hás de ter razão contra a ciência e a realidade,
E contra os fariseus e as lontras luzidias,
E contra os guarás e os elogiados. E contra todos os peixes.
E também os mariscos, as ostras e os trairões fartos de equilíbrio e
Pundhonor.
Pum d’honor.
Qué-de as Juvenilidades Auriverdes!
Eu tenho medo... Meu coração está pequeno, é tanta
Essa demagogia, é tamanha,
Que eu tenho medo de abraçar os inimigos,
Em busca apenas dum sabor,
Em busca dum olhar,
Um sabor, um olhar, uma certeza...

É noite... Rio! meu rio! meu Tietê!
É noite muito!... As formas... Eu busco em vão as formas
Que me ancorem num porto seguro na terra dos homens.
É noite e tudo é noite. O rio tristemente
Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa.
Água noturna, noite líquida... Augúrios mornos afogam
As altas torres do meu exausto coração.
Me sinto esvair no apagado murmulho das águas.
Meu pensamento quer pensar, flor, meu peito
Quereria sofrer, talvez (sem metáfora) uma dor irritada...
Mas tudo se desfaz num choro de agonia
Plácida. Não tem formas nessa noite, e o rio
Recolhe mais esta luz, vibra, reflete, se aclara, refulge,
E me larga desarmado nos transes da enorme cidade.

Si todos esses dinossauros impotentes de luxo e diamante,
Vorazes de genealogia e de arcanos,
Quisessem reconquistar o passado...
Eu me vejo sozinho, arrastando sem músculo
A cauda do pavão e mil olhos de séculos,
Sobretudo os vinte séculos de anticristianismo
Da por todos chamada Civilização Cristã...

Olhos que me intrigam, olhos que me denunciam,
Da cauda do pavão, tão pesada e ilusória.
Não posso continuar mais, não tenho, porque os homens
Não querem me ajudar no meu caminho.
Então a cauda se abriria orgulhosa e reflorescente
De luzes inimagináveis e certezas...
Eu não seria tão somente o peso deste meu desconsolo.
A lepra do meu castigo queimando nesta epiderme
Que encurta, me encerra e me inutiliza na noite,
Me revertendo minúsculo à advertência do meu rio.
Escuto o rio. assunto estes calabouços em que o rio
Murmura num banzeiro. E contemplo
Como apenas se movimenta escravizada a torrente,
E rola a multidão. Cada onda que abrolha
E se mistura no rolar fatigado é uma dor. E o surto
Mirim dum crime impune.

Vem de trás o estirão. É tão soluçante e tão longo,
E lá na curva do rio vêm outros estirões e mais outros,
E lá na frente são outros, todos soluçantes e presos
Por curvas que serão sempre apenas as curvas do rio.
Há de todos os assombros, de todas as purezas e martírios
Nesse rolo turvo das águas. Meu Deus! meu
Rio! como é possível a torpeza da enchente dos homens!
Quem pode compreender o escravo macho
E multimilenar que escorre e sofre, e mandado escorre
Entre injustiça e impiedade, estreitado
Nas margens e nas areias das praias sequiosas?
Elas bebem e bebem. Não se fartam, deixando com desespero
Que o resto do galé aquoso ultrapasse esse dia,
Pra ser represado e bebido pelas outras areias
Das praias adiante, que também dominam, aprisionam e mandam
A trágica sina do rolo das águas, e dirigem
O leito impassível da injustiça e da impiedade.
Ondas, a multidão, o rebanho, o rio, meu rio, um rio
Que sobe! Fervilha e sobe! E se adentra fatalizado, e em vez
De ir se alastrar arejado nas liberdades oceânicas,
Em vez se adentra pela terra escura e ávida dos homens,
Dando sangue e vida a beber. E a massa líquida
Da multidão onde tudo se esmigalha e se iguala,
Rola pesada e oliosa, e rola num rumor surdo,
E rola mansa, amansada imensa eterna, mas
No eterno imenso rígido canal da estulta dor.

Porque os homens não me escutam! Por que os governadores
Não me escutam? Por que não me escutam
Os plutocratas e todos os que são chefes e são fezes?
Todos os donos da vida?
Eu lhes daria o impossível e lhes daria o segredo,
Eu lhes dava tudo aquilo que fica pra cá do grito
Metálico dos números, e tudo
O que está além da insinuação cruenta da posse.
E si acaso eles protestassem, que não! que não desejam
A borboleta translúcida da humana vida, porque preferem
O retrato a ólio das inaugurações espontâneas,
Com béstias de operário e do oficial, imediatamente inferior,
E palminhas, e mais os sorrisos das máscaras e a profunda comoção,
Pois não! melhor que isso eu lhes dava uma felicidade deslumbrante
De que eu consegui me despojar porque tudo sacrifiquei.
Sejamos generosíssimos. E enquanto os chefes e as fezes
De mamadeira ficassem na creche de laca e lacinhos,
Ingênuos brincando de felicidade deslumbrante:
Nós nos iríamos de camisa aberta ao peito,
Descendo verdadeiros ao léu da corrente do rio,
Entrando na terra dos homens ao coro das quatro estações.

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