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domingo, 30 de janeiro de 2011

II - MÁRIO DE ANDRADE: UM UTOPISTA? - CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA: 1o ATO - 2a CENA

II - MÁRIO DE ANDRADE: UM UTOPISTA? - CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA: 1o ATO - 2a CENA

NEUZA MACHADO

Este texto de Mário de Andrade, motivo de nossas reflexões, tem por cenário um armazém-depósito de café de um determinado Cais de Porto paulista, mas, enquanto criação literária insuperável, sai do âmbito particular de quem o idealizou alcançando incômodas questões universais, questões que incomodaram o escritor naquele momento e incomodam ainda os leitores de hoje.

E é ainda por intermédio de um pensar interativo, refletindo alguns trechos e textos da obra de Mário de Andrade que continuo indagando aos leitores de meu Blog (os que me honram com suas leituras): MÁRIO DE ANDRADE FOI UM UTOPISTA? APENAS SONHOU OU REALMENTE PREVIU UMA REVOLUÇÃO SOCIAL NO FUTURO DO BRASIL?


CAFÉ - CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA

(Em três atos)


SEGUNDA CENA

A COMPANHIA CAFEEIRA, S. A.


Também noutras partes daquelas terras a fome e a angústia vai feroz. A orquestra, muito triste e abafada chega coleando, fazendo esforço pra saber o que será da existência. Mas eis que se aclara porque o pano sobe nos dando o céu claro dez horas da manhã, cafezal pleno. A cena mostra uma encruzinhada de carregadores, árvores já taludas, com oito anos, saias grandes pousando na terra-roxa. Na ponta dum dos carreadores está uma laranjeira carregadinha de fruta madura. É o único gesto de altura, vivo de cor, variando os horizontes longínquos, largos, levemente ondulados no célebre cafezal da Companhia Cafeeira S. A.

Os colonos estão por ali, terminando de almoçar. É fácil de perceber idade e condição deles pela roupa. As moças solteiras estão de vestido vermelho, cor sexual de quem deseja homem na vastidão dos campos. Os rapazes já não querem mais a casa das camisas bordadas com que os pais deles chegaram da Europa bestial das aldeias. Estão de azulão vivo, a algum já terá o seu chapéu de caubóe, aprendido no cinema. As mulheres casadas relembram a “Colona Sentada” de Cândido Portinari, a saia de um vermelho já bem gasto e lavado, aquela espécie de mantinê largo de um azul quase cinza, bem neutro, e o lenço também de vermelho gasto, protegendo os cabelos. Os seus maridos, calças de brim cinzento que aguenta a semana, camisas brancas, sem brancura. As velhas estão de preto completamente, e os velhos estão ridículo, com suas calças grossas, muito largas, pardacentas, e aqueles blusões de cores que foram vivas, rosadas, amareladas, esverdeadas. As meninotas de vermelho, e os meninos da cor do chão.

Pois um destes não se conteve. Percebendo que todos estavam distraídos na arrumação dos badulaques do almoço, roubou uma laranja da árvore, a furou com o dedinho e vai chupá-la. Uma velha viu, mostra o menino a outra. Aliás vários colonos viram, mas fingem que não: que o animalzinho aprenda por si. E o menino, se imaginando livre de olhares, chupa a fruta com ansiedade. Faz uma careta e joga a laranja longe, enquanto velhos e velhas caem na risada. Agora o bobo vai ficar conhecendo pra sempre o provérbio da terra: “Laranja no café, é azeda ou tem vespeira”.

Mas a mocidade e os casados, menos filósofos pra se divertirem com os provérbios da experiência, já agarraram no trabalho da colheita. Nada dispostos, aliás, mecanizados, fatalizados apenas pela obrigação. O almoço foi insuficiente, já de muito que os colonos não recebem pagamento, o café para nas estações do trem de ferro, os armazéns não fiam mais. A visão da fome espia nas esquinas dos carreadores. Os velhos enfim se decidem a trabalhar também. Mas imediatamente lhes volta a dureza da realidade e um deles, num assomo de desabafo ao menos físico, coça a cabeça com raiva e dá um pontapé na saia da árvore que devia colher.

Ora sucedeu que justamente no instante do pontapé, chegavam pela boca esquerda da cena os donos da Companhia Cafeeira S. A. e os comissários Ex-donos aliás, porque se vendo na possibilidade de curtir alguns anos gastando o que já tinham amontoado, eles acabaram de entregar a fazenda aos comissários, como pagamento de dívida. É gente bem vestida, está claro, vestindo brim do bom. Só que os comissários estão de “brim de linho S.120”, como se diz, branco, corte de cidade, pra luzir nos escritórios e na bolsa. Os donos ainda trazem o brim caqui, de fazenda, calça de montar, polainas bem engraxadas, chapéus largos, panamás legítimos.

Esquecidos de que a fazenda lhes pertencem mais, ficam indignados com o velho e colheita distratada, passam pito. Os colonos vão pra baixar a cabeça, mas as mulheres, sempre a mulher que é mais perfeita, intervêm irritadas, desesperadas, a discussão cresce rápida, se azeda. Tem um momento em que tudo está pra estourar. Os colonos vão perder o tino, vão “amassar” aqueles senhores impiedosos que não arranjam nada, não querem pagar os ordenados de meses, pouco estão se amolando com a fome dos pobres. É um instante bravo de silêncio aquele da decisão. E os donos se preparam também pra brigar, buscando sem disfarce os revólveres no bolso trazeiro da calça ou na cinta. Qual, assim não vai mesmo nem adianta: o milhor é abandonar a fazenda, desistir daquela espera improvável, ir buscar pão onde ele se esconder. E os colonos anunciam que abandonarão a fazenda. Não era isto exatamente que os senhores queriam. Queriam era a submissão, a sujeição total. Em todo caso livraram as epidermes, e aproveitam a decisão dos colonos pra fugir dali, um bocado apressadinhos não têm dúvida, mas bancando gestos de indignação.

E agora os colonos estão sós. Estão consigo de novo, e a orquestra com eles, cai na realidade terrível. Acaso não teriam sido precipitados por demais?... É o desemprego, é o caminhar nas estradas do acaso, é o bater nas portas, é o mofar na impiedosa indiferença das cidades. Têm a noção muito vaga ainda de que tudo é um crime infame. Não poderão gritar. A poeira dos caminhos vai secar a voz nas gargantas. Ou poderão gritar! Não sabem, não conhecem, não entendem. Parece que tem momentos nesta vida dura em que a gente se revolta, não é porque queira decididamente se revoltar, mas porque uma força maior move a gente e se fica sem capacidade mais pra não se revoltar. As velhas já partiram em busca da colônia, arranjar seus trastes, suas trouxas. As mulheres casadas principiam partindo também. Melancolicamente. E o pano cai depressa, bem depressa.

(Amanhã postarei a 1a Cena do Segundo Ato — CÂMARA-BALLET — deste inquietante texto de Mário de Andrade)

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