AS MENINAS DE LYGIA FAGUNDES TELLES - NARRATIVA DE ACONTECIMENTO-SÉCULO XX - 17
NEUZA MACHADO
Diferente dos autores masculinos daqueles anos de ditadura, tais como Murilo Rubião e Roberto Drummond, que desarticulavam seus personagens e os metamorfoseavam e tentavam novamente articulá-los, refletindo nitidamente a estrutura social do despotismo vigente, Lygia não desarticula, nesta narrativa, suas personagens femininas. Singularmente, enquanto escritora brasileira dos anos de 1960, prefere desarticular a principal voz que expõe os acontecimentos, transferindo para as próprias personagens a função de narrar, numa mistura de vozes que se confundem e se amalgamam, confundindo, também, o leitor neófito. O narrador central, ao se desarticular, perde a sua identidade de ser experiente (característica de narrador linear), indutor de normas e condutas comunitárias a serem seguidas. As vozes que narram entrelaçadas representam a aparente alienação do narrador central (representando também uma renovadora modalidade do ato de narrar).
As narrativas de Acontecimento de acordo com a semiologia da literatura caracterizam-se pela perda de identidade de seus personagens, principalmente, do personagem-narrador. Essas narrativas com características insólitas marcaram a produção ficcional do século XX, demonstrando, claramente, a chamada desorientação verbal (marca dos narradores modernos e pós-modernos) de que nos fala Valter Benjamim em seu estudo sobre o narrador ficcional da Era Moderna (não confundir com narrador épico).
Nesta narrativa de Lygia – seguindo os preceitos da Ciência da Literatura, os quais realçam a perda de identidade nos personagens do século XX –, quem não possui identidade é o personagem-narrador (ficcional) em terceira pessoa. O narrador em terceira pessoa está aparentemente afastado do fluxo narrativo, aparentemente sem voz, uma vez que passa todos os créditos do ato de narrar para os diversos pareceres narrativos, entrelaçados. Entretanto, uma das narradoras de Lygia teria de sair vencedora, adquirindo o direito de recuperar a identidade quase perdida. Coube a Lorena o privilégio de vitória, ao seguir as Leis ideológicas de seu momento histórico.
No início, e no decorrer da narrativa, encontra-se fragilizada, mas o final é surpreendente: “Não posso falar, estou chorando e desfazendo nas solas das sandálias a marca que ela deixou. (...) Procuro a flanela. Limpo o pára-brisa. O perfume de Ana Clara ainda está entre nós. Mas Lião deve ter tido o mesmo pensamento: abriu uma fresta da janela. (...) Ai meu Pai, a prova. É tempo de entrar, me enfiar num chuveiro, tomar um copo de leite quente, apagar as pistas do quarto de Aninha e ir correndo para a Faculdade. É preciso sair antes que. Antes”.
Subitamente forte e vitoriosa, depois da morte de Ana Clara e o afastamento político-amoroso de Lião, volta para a casa da mãezinha, assumindo a sua condição de menina rica. A singela e alienada Lorena é a face-símbolo das jovens bem-nascidas dos anos de 1950/60. Encontra-se amparada socialmente, já que possui (ainda) dinheiro e nome de família “– Mas não é mesmo maravilhoso, Lião? Quando a gente está do lado de Deus – digo e breco o carro” (voz de Lorena). “– Mas Deus está deste lado?” (voz de Lião).
É compreensível que Lorena adquira força no final. Ela representa o poder criador de uma ficcionista singular, merecedora dos aplausos que sempre recebeu da Crítica especializada. Neste final narrativo, é Lorena, a socialmente mais equilibrada, que readquire a identidade perdida, com chances de continuidade histórica. Lorena teria de ser forçosamente a vitoriosa, visto que se posicionou, desde o início, como ponto de equilíbrio para sustentar um fio narrativo insólito, agenciando assim a possibilidade de um eterno retorno ficcional, a renovada ressurreição do ato de narrar.
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