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sábado, 29 de janeiro de 2011

I - MÁRIO DE ANDRADE: UM UTOPISTA? - CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA: 1o ATO - 1a CENA

I - MÁRIO DE ANDRADE: UM UTOPISTA? - CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA: 1o ATO - 1a CENA

NEUZA MACHADO

O passado do Brasil não deve jamais ser esquecido! A situação de miséria em que vivia a maior parte da população brasileira desde o início da República até o final do século XX em tempo algum deverá sair de nossas mentes. Os brasileiros mais jovens têm o direito de criticar o seu momento sócio-político, de desejar e buscar ardentemente sempre e sempre mais facilidades monetárias e dignidade social. Isto é louvável! Mas, antes das críticas aleatórias, seria de bom alvitre que pesquisassem as odiosas ocorrências de nosso pretérito, o estado de total penúria da maior parte da população em anos já idos ante um grupelho de ricaços que pouco oferecia em troca do trabalho pesado da população de baixíssima renda.

A História do Brasil do século XX não relata tais agruras. As crônicas da época chegaram até nós sem mostrar-nos o que realmente acontecia nos subterrâneos da pobreza extrema. Os cronistas procuraram privilegiar os grandes acontecimentos (a arraia-miúda não tinha nenhuma importância jornalística). Mas a literatura, ou melhor, os singulares escritores da chamada literatura-arte, ou Literatura Atemporal, para muito além das Verdades Jornalísticas e/ou Históricas, deixaram impressos (consciente ou inconscientemente) as suas impressões sobre a terrível realidade de nosso passado repleto de hipocrisias político-sociais.

A boa literatura daquela época, independente do posicionamento político do escritor ― fosse ele partidário da esquerda ou da direita, a vivenciar as ideologias de seu momento —, ainda hoje se apresenta como o melhor meio de comunicação a ajudar-nos em nossas comparações entre o passado e o presente de nosso país. Mário de Andrade, por exemplo, enquanto amigo de políticos que hoje sabemos não eram assim tão favoráveis a uma emancipação da pobreza (à época, ele não podia adivinhar!), mesmo rodeado por falsários políticos, mesmo admitindo gostos burgueses, como ele mesmo se referiu à sua pessoa em uma carta a um grande político da época, apreciando a sua própria vida e a boa vida dos grandalhões ricos de sua São Paulo, mesmo assim — consciente ou não — legou-nos textos preciosos que revelam o lado deplorável em que vivia a maior parte dos trabalhadores brasileiros nos anos iniciais do século XX.

Este texto (ficcional?) de Mário de Andrade, motivo de nossas reflexões, tem por cenário um armazém-depósito de café de um determinado Cais de Porto paulista, mas, enquanto criação literária insuperável, sai do âmbito particular de quem o idealizou alcançando incômodas questões universais, questões que inquietaram o escritor naquele momento e incomodam ainda os leitores de hoje.

E é ainda por intermédio de um pensar interativo, refletindo alguns trechos e textos da obra de Mário de Andrade que continuo indagando aos leitores de meu Blog (os que me honram com suas leituras): MÁRIO DE ANDRADE FOI UM UTOPISTA? APENAS SONHOU OU REALMENTE PREVIU UMA REVOLUÇÃO SOCIAL NO FUTURO DO BRASIL?

Vamos iniciar hoje a leitura de CAFÉ - CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA (EM TRÊS ATOS), textos escritos entre os anos de 1933 a 1942. Colocarei aqui, nesta postagem, apenas a Primeira Cena do Primeiro Ato. Como o texto é longo, as outras cenas e os outros atos serão postados gradativamente. Mas, não se enganem: o texto não pertence ao Gênero Dramático (não é peça teatral para ser apresentada em um palco), pertence ao Gênero Narrativo Ficcional (narrativa em prosa, catársis indireta). Peço-lhes que leiam os trechos aqui postados sublinhando as palavras-chave. Por favor, peço aos meus leitores que repensem cada palavra, cada parágrafo, reclamo que repensem o texto em sua totalidade (e lembrem-se de que esta narrativa de altíssimo nível artístico foi escrito entre os anos trinta e quarenta do século XX, mas os problemas levantados por Mário de Andrade ainda hoje não foram totalmente resolvidos. De quem será a culpa? Do atual Governo Popular? Da minoria rica e privilegiada socialmente — “os donos da vida” — que não quer dividir o bolo em fatias iguais?).


CAFÉ - CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA

(Em três atos)


PRIMEIRO ATO – PRIMEIRA CENA

PORTO PARADO

Desde muito que os donos da vida andavam perturbando a marcha natural do comércio do café. Os resultados foram fatais. Os armazéns se entulharam de milhões de sacas de café indestinado. E foi um crime nojento. Mandaram queimar o café nos subúrbios escusos da cidade, nos mangues desertos. A exportação decresceu tanto que o porto quase parou. Os donos viviam no ter e se aguentavam bem com as sobras do dinheiro ajuntado, mas e os trabalhadores, e os operários, e os colonos? A fome batera na terra tão farta e boa. Os jornais aconselhavam paciência ao povo, anunciavam medidas a tomar. Futuramente. A inquietação era brava e nos peitos dos estivadores mais sabidos do porto parado, numa hesitação desgraçada, entre desânimos, a cólera surda esbravejava, se assanhavam os desejos de arrebentar.

A orquestra, de supetão, está agitadíssima, desagradável, quase tão irrespirável como o turbilhão que agita interiormente os estivadores. O pano se ergue rápido no armazém do porto. O armazém está sombrio, apenas no fundo a fresta da vasta porta de correr. As pilhas de sacas de café sobem até o teto no fundo, dos dois lados. Na frente, as sacas se amontoam mais desordenadas, às quatro, às três, outras sozinhas. Sobre elas, deitados, sentados, aos grupos, os estivadores quase imóveis esperam. Mais deixam raivar o turbilhão que têm do peito do que esperam, esperar o quê! A um lado, junto à ribalta, um grupo deles no chão quer matar o tempo no jogo do truco. A vestimenta de todos é a mesma, calças escuras largas, e as camisas de meia com listas vivamente coloridas, vermelho e branco, azul marinho e branco, amarelo e roxo, verde e encarnado. Esta calça de veludo cor de charuto denuncia um espanhol, assim como a boina que ele traz. Estes bigodes no estivador gordo, denunciarão o português. Tem a palheta de banda deste rapaz amulatado, e dois negros de cabeça ao vento, enormes, luzindo.

Na fresta da porta do fundo entra mais um estivador. Vem desanimado, lento, lerdo, se arrastando até o centro da cena. O jornal que tinham mandado ele buscar não trouxe notícia nenhuma, e ele o arrasta no chão, da mão pendida. Todos os estivadores se interessam pelo que dirá o recém-chegado, mas ele nem fala, coitado, faz um gesto só: amarfanha o jornal de parolagem e o atira com nojo no chão. E o desânimo agora abafa a todos, mais completo. Aqueles homens enormes, forças brutais, se sentem feito crianças na decisão a tomar. Como será possível que aquela terra deles, sempre tão altiva, tão generosa também, tenha perdido assim o seu porte de grandeza? O que fazer, agora que o café está baixo, sem valor. E manso, melancólico, sofrido o queixume daqueles homens fortes enche o bojo sombrio do armazém. E morre num abafamento implacável. Talvez fosse milhor morrer... E os estivadores se estiram por aí, na fraqueza vil da pasmaceira. Os jogadores voltam ao seu truco disfarçador. Fosse domingo, iriam ser sugados totalmente de suas forças morais, no futebol apaixonante, que isto, os generosos donos da vida não se esquecem de arranjar. E ainda um italiano e o rapaz da palheta se adormecem no jogo da morra. E parece que nada vai suceder.

Mas eis que duas mulheres de repente espiam pela fresta da porta. São eles sim, são os companheiros que elas andaram buscando pelos botequins do cais. Mas o portuga do boteco deu o basta do fiado e eles vieram ali. As mulheres, raivosas, correm a porta do armazém em toda a extensão. E agora se enxerga bem nítido o porto parado, a linha reta do cais vazio, o verde gasto do mar vazio, e um céu claro, branquiçado, sem nuvens, da mesma impassível desolação.

E o grupo agitado de umas vinte mulheres corre para o centro da cena. Estão quase delirantes, não podem mais, os filhos choram em casa pedindo pão, elas também estão famintas, e os maridos, os companheiros, o que fazem? Os seus vestidos femininos de fazendas lavradas, botam uma nota turbulenta e multicor no ambiente. “Eu quero o meu pão!” que elas gritam, quase desvairadas. Mas aqueles homens, amolentados ainda pela indecisão, num desalento cínico não têm mais esperança em nada. “Quem pode dar pão?”, eles murmuram, ecoando em cinza de eco, o grito vivo das mulheres.

Quem pode dar pão?... O café pode dar pão. Sempre dera o pão, a roupa e a paz relativa dos pobres. Mas agora aquele companheiro generoso de outros tempos, jaz ali, inútil, vazio de força, como o cais, como o porto: vazio. E as mulheres e os homens, numa alucinação, contemplam as pilhas mudas de sacas. Eles amam, sempre amaram aquele café paterno, que agora parece falhar. Mas ainda há-de estar nele a salvação de todos. As mulheres se aproximam das sacas, se abraçam com elas, contando os seus segredos de miséria, acarinham o grão pequenino que não falhará. E o grão pequenino lhes segreda o segredo que eles não se animavam a se revelar. Aquela fome que eles sentiam não era apenas uma fome de alimento, mas outra maior, a fome milenar dos subjugados, fome de outra justiça na terra, de outra igualdade de direitos para lutar e vencer.

E o pano desce lentamente, dando tempo a que o segredo que a cena revelou, se grave pra sempre no coração de todos os oprimidos.


(Amanhã postarei a Segunda Cena do Primeiro Ato — A COMPANHIA CAFEEIRA, S. A. — deste inquietante texto de Mário de Andrade)

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