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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

III - MÁRIO DE ANDRADE: UM UTOPISTA? - CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA: 2o ATO - 1a CENA

III - MÁRIO DE ANDRADE: UM UTOPISTA? - CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA: 2o ATO - 1a CENA

NEUZA MACHADO

“É bem difícil explicar o que teria levado o autor à invenção subitânea deste “Câmara-Ballet” que, até pelo nome, já denuncia a sua intenção de vaia. É possível se crer, se deve crer numa humanidade tão civilizada que permita a existência de câmaras eficazes? E afinal são sempre câmaras a caximbada dos Velhos na tribu e as salas improvidadas dos sovietes.”

Nestas palavras do próprio Mário de Andrade (e nas seguintes do trecho que vamos apreciar) está a visão do Socialismo Político que lhe foi encalcada. E até aqui ainda não há como detectar a sua real posição política. À época, dizia-se às crianças que os Comunistas “comiam criancinhas”. O medo do Comunismo-Socialismo, disseminado pela política contrária do Capitalismo Selvagem, impedia aos brasileiros ricos e pobres do entre-guerras do século XX de perceberem a terrível realidade: a disseminação de uma propaganda de medo, promovida pelos Poderosos Capitalistas contra as idéias do Socialismo, já em andamento, era o meio seguro de escravizarem cada vez mais os mais necessitados. Sabemos que Mário de Andrade foi amigo de políticos-capitalistas e jornalistas poderosos. Entretanto, aqui não nos importam as suas convicções políticas. Se ele era ou não contra o Socialismo e favor do Capitalismo e deixou isto claro em seus textos, o real de seu direcionamento político não invalidará a nossa questão central: MÁRIO DE ANDRADE FOI UM UTOPISTA? APENAS SONHOU OU REALMENTE PREVIU UMA REVOLUÇÃO SOCIAL NO FUTURO DO BRASIL?


CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA

(Em três atos)


SEGUNDO ATO - PRIMEIRA CENA

CÂMARA-BALLET


É bem difícil explicar o que teria levado o autor à invenção subitânea deste “Câmara-Ballet” que, até pelo nome, já denuncia a sua intenção de vaia. É possível se crer, se deve crer numa humanidade tão civilizada que permita a existência de câmaras eficazes? E afinal são sempre câmaras a caximbada dos Velhos na tribu e as salas improvidadas dos sovietes. Por isto, a intenção de “Câmara-Ballet” se limita, é vaia, mas por tudo quanto de falsificação e de ridículo, os anões subterrâneos do servilismo, fizeram das câmaras o que a história conta. Ineficientes, traidoras e postas ao serviço dos chefes.

Estamos em plena farsa, e até o pano “farseia”, não querendo subir, caindo de repente. Os personagens são vários, pois o enredo cai em cheio numa sessão de câmara de deputados. A mesa da presidência está na boca da cena, bem junto do ponto, e por trás dela se vê as bancadas numa inclinação leve, de maneira que o presidente, vice, e os secretários da Mesa dão as costas ao público, ao passo que os deputados nos encaram de frente. E mais ou menos a meia altura da cena, atrás, estão as galerias da assistência pública. Quando a reunião não é secreta.

A sala de sessões é bem chique, todos os móveis, mesa, bancada, parapeito das galerias, até o chão, tudo branquinho, d’um branco alvar. Ao passo que todos os personagens da câmara estão de preto, Mesa e deputados de sobrecasaca, e um plastron gordo com uma enorme pérola branca de enfeite. Os serventes também de preto, com os botões de prata no dólmã. E os jornalistas? Si os serventes são cinco, de pé, do lado direito da cena, na mesma linha da Mesa, na mesma linha ainda da Mesa, mas do outro lado, os jornalistas também são cinco, sentados em cadeiras enfileiradas, uma atrás da outra. Sucede que as cadeiras jornalísticas estão de perfil pro público, não deixando por enquanto ler o título do jornal a que cada uma pertence, por honra e graça inusitada e inusada dessa força enorme e tão facilmente servil que é o jornal. Ora os títulos dos jornais da terra, que se erguem do encosto das cadeiras, são “O Patativa”, “Diário da Luz”, “O Clarim”, “O Presidente” e o “Jornal das Modas”. Os jornalistas também se vestem seriamente de preto, mas não usam sobrecasaca mais, são modernos. Usam um palitozinho curto, calças apertadas ainda mais curtas acabando um palmo acima do tornozelo, deixando ver as lindíssimas meias brancas de seda e os escarpins de verniz. E quanto a gravatas airosamente, os jornalistas só aceitam enormes gravatas cor-de-rosa, com um laço borboleta bem pintor, são lindos. Francamente, esse tal de jornalista é um amor.

Como se vê, tudo é branco e preto. O que vai variar de colorido muito é o pessoal das galerias, que será o mais berrantemente colorido possível. Repete-se as camisas-de-meia dos estivadores, o azulão proletário, dólmãs, quépis, o cáqui de um soldado-raso. Mas as mulheres, muitas e também com tons vivos, serão fazendas lavradas, fazendas de ramagens, fazendas “futuristas” com desenhos abstratos de muitas cores berrantes. Nada de tecido duma cor só, logo se perceberá porque.

E da mesma forma que o presidente e o Vice, alguns personagens têm seus nomes distintivos. Tem, por exemplo, Deputado do Som-Só, o Deputado da Ferrugem, o Deputado Cinza e o Secretário Dormido.

Quando ergue o pano, está falando o Deputado do Som-Só, um escolado velhusco, que já sabe que se falando num som só, todos dormem e as falcatruas se fazem com mais facilidade. Tem o discurso escrito num papel gigantesco, difícil de manejar de tamanho. Como era de esperar todos dormem, toda a Mesa, os vários deputados, todos os jornalistas, e até um único operário que está nas galerias e ronca de papo pro ar. Só os serventes à direita é que parolam suas intriguinhas de ofício, problemas de gorjetas, intercâmbio de amantes de deputados, chamados de magnatas e banquetes oficiais.— a vida deles. É o Quinteto dos Serventes.

E este é que acaba musicalmente porque o Deputado do Som-Só não acabaria nunca, si não fosse entrar o Deputadinho da Ferrugem, muito novo ainda, filho de chefe político não há dúvida, com ar de quem descobriu a pólvora.

Não vê que tendo estudado direito e se formado em nove anos rápidos, percorreu o Corpus Júris e toda a legislação existente, e com assombro (lá dele) descobriu que ainda ninguém não legislara sobre o ínclito fenômeno da ferrugem nas panelas de cozinha. E decidiu salvar a pátria. Se fechou seis meses a fio num cabaré, só saindo pra comer dinheiro público na câmara, e escreveu um discurso de embolada maravilhoso sobre o dito assunto. Ele é que entrou pimpante, na emoção gavotistica da estréia felicíssima que os jornais já elogiaram. Está claro, durante todo o bailado é um entra-e-sai de deputados que não se acaba. Ao passo que as galerias vão se enchendo pouco a pouco e quando arrebentar a bagunçona, estará repleta.

Pois o Deputadinho da Ferrugem está louco pra falar, mas quem disse o Deputado do Som-Só dar fim ao lerolero. Agora todos acordaram, menos o Secretário Dormido, sempre de bruço, sonhando sobre a mesa. O resto não, quer escutar a estréia do Deputadinho da Ferrugem. Os jornalistas aspiram tomar muitas notas. Pegam do chão, ao lado, os seus maços de papel pra notas, que pelo maço e o tamanho servem também pra outra coisa, e os lápis, que lápis? desses gigantescos, feitos pra anúncio nos mostradores das papelarias. Mas vamos ter o discurso, porque entrou um polícia muito lindo, até polainas brancas, bateu no ombro do Som-Só e fez pra ele parar. Ele para que é só pra isso mesmo que ele existe e principiará dobrando o discurso, dobrando que mais dobrando até o fim do “Câmara-Ballet”.

O Deputadinho da Ferrugem fala enfim. Fala bem, fala verdade, e é tão gostosa a fala “andantino grazioso” dele, que entre aplausos e gostosa satisfação toda a câmara entra no movimentinho suave se movendo pendularmente de cá pra lá, de lá pra cá. Menos o povo das galerias que procura saber o que se decide da vida. Um operário não se contém afinal. “Praquê falar em ferrugem de panela, si não tem o que cozinhar!” ele estoura. Outros querem que se trate do problema do café. Os deputados se contrariam muito, o presidente bate no sinão enorme. Ora, no princípio do discurso da ferrugem, o Secretário Dormido, que já estava cansado da posição, se aninhara no colo do secretário seu vizinho e lhe dormira no ombro. Meio que acorda com a baguncinha do povo, muda de posição outra vez. Se ajoelha no chão, com a bunda nos calcanhares e se debruça no assento da sua própria cadeira, aí pondo, sobre os braços, a cabeça dormida.

Ora nos bastidores estava esperando que o discurso acabasse o Deputado Cinza. Não que pretendesse fazer o discurso também, não vê que ele ia se comprometer. Mas o Deputado Cinza é desses uns que gostam muito de estar bem com todos. Eu cá sou pelo que é justo, como eles dizem. D’aí se vestirem completamente de cinzento, que é a cor neutra por excelência. Pois do que mais ele havia de se lembrar! Industriou bem (pensou que industriou) a Mãe, uma colona cheia de filhos, fez ela decorar um discursinho bem comodamente infeliz, contando que os filhos tinham escola dada pelo governo, roupa de inverno dada pela Liga das Senhoras Desusadas e muito feijão com arroz que o Ministério da Abastança iria plantar no ano que vem. Remédio então era mato, remédio, dentista, calista, manicura, boninas, water-closet e balangandãs. A Mãe decorou, decorou, custava decorar aquele final dizendo que a vida estava triste e o Governo era muito bom, não havia jeito de lembrar as palavras! Mas enfim estava ali nos bastidores com o Cinza, esperando muito nervosa, diz-que era pra ela falar naquele meio de tanta gente elevada tão limpa. De forma que quando, amedrontado com a baguncinha o Deputadinho da Ferrugem acabou, uf! ela não quis entrar e o Deputado Cinza teve que arrastar a infeliz pelo recinto lustroso da câmara. E a Mãe entra chamando a atenção de todos. Coitada, botou o único vestido completo que ainda possuía. É aquele vestido todinho encarnado vivo, duma cor só. Na cabeça, escondeu os cabelos destratados no lenço de sentineta verde vivo. E traz consigo os três filhinhos que não tinha com quem deixar. Os dois maiores, que andam, se agarram horrorizados na saia dela. O recém-nascido lhe dorme no braço, envolto no chale amarelo cor-de-ovo. E de cor-de-ovo estão também os outros dois, fazendinha que sobrou de incêndio. E a Mãe com os filhos botam a cor do alarma no recinto. Que será! que não será! E o Deputado Cinza gesticulava pra ela: Fala, diabo de mulher! Mas a Mãe estava horrorizada, queria, pedia pra sair, fugir dali. “Fala, diabo!” que ele gesticulava.

Então a Mãe se viu perdida. Numa espécie de delírio que a toma, se evapora todo o discurso decorado. Sem resolver, sem decidir, sem consciência, sem nada, apenas movida por um martírio secular que a desgraça transmite aos seus herdeiros, ela se põe a falar. Não são dela as palavras que movem-lhe a boca, são do martírio secular. São palavras duma verdade não bem sabida, não bem pensada, são palavras bobas. Muitos deputados vão-se embora pra não perder tempo. Outros adormecem. Falar nisso: o Secretário Dormido mudou de posição outra vez. A cadeira estava incômoda decerto. O fato é que ele a empurra e sempre de joelhos, põe os braços no chão e sobre eles descansa a cara dormida agora se amostrando ao público, e a bunda ao vento, erguida como parte principal dos secretários de câmaras.

Bom, os demais não estão muito se amolando com a fala da Mãe, só as galerias lhe devoram as palavras. E aos poucos, deputados, jornalistas, serventes, a Mesa, todos esses anões subterrâneos do servilhismo, utilizados pelos gigantes da mina de ouro, todos, pra não escutar tanta besteira, se botam recordando o maravilhoso discurso sobre a ferrugem das panelas de cozinha. E o mesmo ritmo balangado de antes volta aos poucos e afinal se afirma franco, quando as palavras alucinadas da Mãe se tornam insuportáveis de ouvir. Tudo se mexe, tudo cantarola, tudo dança na câmara. Os jornalistas montaram a cavalo em suas cadeiras e com pulinhos vão formando roda, afinal mostrando os títulos dos jornais ao público. Os serventes também dançam de roda, se dando as mãos. O que fez o presidente? É que, não podendo mais escutar os gritos lamentosos da Mãe, mas correspondendo a ele, a galeria, realistamente se move, se revolta, insulta, berra, diz nomes-feios com razão. E o presidente, movendo o sino engraçado, não vê que se esqueceu da vida e está brincando com o sino, jogando ele no ar. Também o Deputado Cinza, quando viu a bagunçona estourar, disse consigo: Bem, cumpri com o meu dever, agora lavo as mãos. Lavou mesmo. Lavou na água astral do cinismo, e para enxugá-las, puxou do bolso aquela espécie de lenço de Alcobaça, lenço não, lençol vasto, de todas, mas todas as cores. De todas as cores.

Mas isto não se aguenta mais, é o cúmulo! Onde se viu agora o povo querer ter opinião! Onde se viu nunca as Mães falarem! Aqui é que entra o destino precípuo da polícia dos gigantes. Isso entram corvejantes nas galerias uns policiais, tiram os sabres com realismo cru, e principiam chanfalhando o povo. Como reagir, ainda somos poucos, a coisa inda não se organizou num destino unânime. Ainda não surgiu do enxurro das cidades, o Homem Zangado, o herói moreno que os há-de anular na errupção coletiva final. E o povo fogem, as galerias se despovoam, enquanto mais dois polícias que entraram no recinto da câmara, levam presa aos empurrões aquela doida. O pano cai com violência, sem achar mais graça nenhuma na farsa.

(Amanhã postarei a 2a Cena do Segundo Ato — O ÊXODO — deste inquietante texto de Mário de Andrade)

domingo, 30 de janeiro de 2011

II - MÁRIO DE ANDRADE: UM UTOPISTA? - CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA: 1o ATO - 2a CENA

II - MÁRIO DE ANDRADE: UM UTOPISTA? - CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA: 1o ATO - 2a CENA

NEUZA MACHADO

Este texto de Mário de Andrade, motivo de nossas reflexões, tem por cenário um armazém-depósito de café de um determinado Cais de Porto paulista, mas, enquanto criação literária insuperável, sai do âmbito particular de quem o idealizou alcançando incômodas questões universais, questões que incomodaram o escritor naquele momento e incomodam ainda os leitores de hoje.

E é ainda por intermédio de um pensar interativo, refletindo alguns trechos e textos da obra de Mário de Andrade que continuo indagando aos leitores de meu Blog (os que me honram com suas leituras): MÁRIO DE ANDRADE FOI UM UTOPISTA? APENAS SONHOU OU REALMENTE PREVIU UMA REVOLUÇÃO SOCIAL NO FUTURO DO BRASIL?


CAFÉ - CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA

(Em três atos)


SEGUNDA CENA

A COMPANHIA CAFEEIRA, S. A.


Também noutras partes daquelas terras a fome e a angústia vai feroz. A orquestra, muito triste e abafada chega coleando, fazendo esforço pra saber o que será da existência. Mas eis que se aclara porque o pano sobe nos dando o céu claro dez horas da manhã, cafezal pleno. A cena mostra uma encruzinhada de carregadores, árvores já taludas, com oito anos, saias grandes pousando na terra-roxa. Na ponta dum dos carreadores está uma laranjeira carregadinha de fruta madura. É o único gesto de altura, vivo de cor, variando os horizontes longínquos, largos, levemente ondulados no célebre cafezal da Companhia Cafeeira S. A.

Os colonos estão por ali, terminando de almoçar. É fácil de perceber idade e condição deles pela roupa. As moças solteiras estão de vestido vermelho, cor sexual de quem deseja homem na vastidão dos campos. Os rapazes já não querem mais a casa das camisas bordadas com que os pais deles chegaram da Europa bestial das aldeias. Estão de azulão vivo, a algum já terá o seu chapéu de caubóe, aprendido no cinema. As mulheres casadas relembram a “Colona Sentada” de Cândido Portinari, a saia de um vermelho já bem gasto e lavado, aquela espécie de mantinê largo de um azul quase cinza, bem neutro, e o lenço também de vermelho gasto, protegendo os cabelos. Os seus maridos, calças de brim cinzento que aguenta a semana, camisas brancas, sem brancura. As velhas estão de preto completamente, e os velhos estão ridículo, com suas calças grossas, muito largas, pardacentas, e aqueles blusões de cores que foram vivas, rosadas, amareladas, esverdeadas. As meninotas de vermelho, e os meninos da cor do chão.

Pois um destes não se conteve. Percebendo que todos estavam distraídos na arrumação dos badulaques do almoço, roubou uma laranja da árvore, a furou com o dedinho e vai chupá-la. Uma velha viu, mostra o menino a outra. Aliás vários colonos viram, mas fingem que não: que o animalzinho aprenda por si. E o menino, se imaginando livre de olhares, chupa a fruta com ansiedade. Faz uma careta e joga a laranja longe, enquanto velhos e velhas caem na risada. Agora o bobo vai ficar conhecendo pra sempre o provérbio da terra: “Laranja no café, é azeda ou tem vespeira”.

Mas a mocidade e os casados, menos filósofos pra se divertirem com os provérbios da experiência, já agarraram no trabalho da colheita. Nada dispostos, aliás, mecanizados, fatalizados apenas pela obrigação. O almoço foi insuficiente, já de muito que os colonos não recebem pagamento, o café para nas estações do trem de ferro, os armazéns não fiam mais. A visão da fome espia nas esquinas dos carreadores. Os velhos enfim se decidem a trabalhar também. Mas imediatamente lhes volta a dureza da realidade e um deles, num assomo de desabafo ao menos físico, coça a cabeça com raiva e dá um pontapé na saia da árvore que devia colher.

Ora sucedeu que justamente no instante do pontapé, chegavam pela boca esquerda da cena os donos da Companhia Cafeeira S. A. e os comissários Ex-donos aliás, porque se vendo na possibilidade de curtir alguns anos gastando o que já tinham amontoado, eles acabaram de entregar a fazenda aos comissários, como pagamento de dívida. É gente bem vestida, está claro, vestindo brim do bom. Só que os comissários estão de “brim de linho S.120”, como se diz, branco, corte de cidade, pra luzir nos escritórios e na bolsa. Os donos ainda trazem o brim caqui, de fazenda, calça de montar, polainas bem engraxadas, chapéus largos, panamás legítimos.

Esquecidos de que a fazenda lhes pertencem mais, ficam indignados com o velho e colheita distratada, passam pito. Os colonos vão pra baixar a cabeça, mas as mulheres, sempre a mulher que é mais perfeita, intervêm irritadas, desesperadas, a discussão cresce rápida, se azeda. Tem um momento em que tudo está pra estourar. Os colonos vão perder o tino, vão “amassar” aqueles senhores impiedosos que não arranjam nada, não querem pagar os ordenados de meses, pouco estão se amolando com a fome dos pobres. É um instante bravo de silêncio aquele da decisão. E os donos se preparam também pra brigar, buscando sem disfarce os revólveres no bolso trazeiro da calça ou na cinta. Qual, assim não vai mesmo nem adianta: o milhor é abandonar a fazenda, desistir daquela espera improvável, ir buscar pão onde ele se esconder. E os colonos anunciam que abandonarão a fazenda. Não era isto exatamente que os senhores queriam. Queriam era a submissão, a sujeição total. Em todo caso livraram as epidermes, e aproveitam a decisão dos colonos pra fugir dali, um bocado apressadinhos não têm dúvida, mas bancando gestos de indignação.

E agora os colonos estão sós. Estão consigo de novo, e a orquestra com eles, cai na realidade terrível. Acaso não teriam sido precipitados por demais?... É o desemprego, é o caminhar nas estradas do acaso, é o bater nas portas, é o mofar na impiedosa indiferença das cidades. Têm a noção muito vaga ainda de que tudo é um crime infame. Não poderão gritar. A poeira dos caminhos vai secar a voz nas gargantas. Ou poderão gritar! Não sabem, não conhecem, não entendem. Parece que tem momentos nesta vida dura em que a gente se revolta, não é porque queira decididamente se revoltar, mas porque uma força maior move a gente e se fica sem capacidade mais pra não se revoltar. As velhas já partiram em busca da colônia, arranjar seus trastes, suas trouxas. As mulheres casadas principiam partindo também. Melancolicamente. E o pano cai depressa, bem depressa.

(Amanhã postarei a 1a Cena do Segundo Ato — CÂMARA-BALLET — deste inquietante texto de Mário de Andrade)

sábado, 29 de janeiro de 2011

I - MÁRIO DE ANDRADE: UM UTOPISTA? - CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA: 1o ATO - 1a CENA

I - MÁRIO DE ANDRADE: UM UTOPISTA? - CAFÉ: CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA: 1o ATO - 1a CENA

NEUZA MACHADO

O passado do Brasil não deve jamais ser esquecido! A situação de miséria em que vivia a maior parte da população brasileira desde o início da República até o final do século XX em tempo algum deverá sair de nossas mentes. Os brasileiros mais jovens têm o direito de criticar o seu momento sócio-político, de desejar e buscar ardentemente sempre e sempre mais facilidades monetárias e dignidade social. Isto é louvável! Mas, antes das críticas aleatórias, seria de bom alvitre que pesquisassem as odiosas ocorrências de nosso pretérito, o estado de total penúria da maior parte da população em anos já idos ante um grupelho de ricaços que pouco oferecia em troca do trabalho pesado da população de baixíssima renda.

A História do Brasil do século XX não relata tais agruras. As crônicas da época chegaram até nós sem mostrar-nos o que realmente acontecia nos subterrâneos da pobreza extrema. Os cronistas procuraram privilegiar os grandes acontecimentos (a arraia-miúda não tinha nenhuma importância jornalística). Mas a literatura, ou melhor, os singulares escritores da chamada literatura-arte, ou Literatura Atemporal, para muito além das Verdades Jornalísticas e/ou Históricas, deixaram impressos (consciente ou inconscientemente) as suas impressões sobre a terrível realidade de nosso passado repleto de hipocrisias político-sociais.

A boa literatura daquela época, independente do posicionamento político do escritor ― fosse ele partidário da esquerda ou da direita, a vivenciar as ideologias de seu momento —, ainda hoje se apresenta como o melhor meio de comunicação a ajudar-nos em nossas comparações entre o passado e o presente de nosso país. Mário de Andrade, por exemplo, enquanto amigo de políticos que hoje sabemos não eram assim tão favoráveis a uma emancipação da pobreza (à época, ele não podia adivinhar!), mesmo rodeado por falsários políticos, mesmo admitindo gostos burgueses, como ele mesmo se referiu à sua pessoa em uma carta a um grande político da época, apreciando a sua própria vida e a boa vida dos grandalhões ricos de sua São Paulo, mesmo assim — consciente ou não — legou-nos textos preciosos que revelam o lado deplorável em que vivia a maior parte dos trabalhadores brasileiros nos anos iniciais do século XX.

Este texto (ficcional?) de Mário de Andrade, motivo de nossas reflexões, tem por cenário um armazém-depósito de café de um determinado Cais de Porto paulista, mas, enquanto criação literária insuperável, sai do âmbito particular de quem o idealizou alcançando incômodas questões universais, questões que inquietaram o escritor naquele momento e incomodam ainda os leitores de hoje.

E é ainda por intermédio de um pensar interativo, refletindo alguns trechos e textos da obra de Mário de Andrade que continuo indagando aos leitores de meu Blog (os que me honram com suas leituras): MÁRIO DE ANDRADE FOI UM UTOPISTA? APENAS SONHOU OU REALMENTE PREVIU UMA REVOLUÇÃO SOCIAL NO FUTURO DO BRASIL?

Vamos iniciar hoje a leitura de CAFÉ - CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA (EM TRÊS ATOS), textos escritos entre os anos de 1933 a 1942. Colocarei aqui, nesta postagem, apenas a Primeira Cena do Primeiro Ato. Como o texto é longo, as outras cenas e os outros atos serão postados gradativamente. Mas, não se enganem: o texto não pertence ao Gênero Dramático (não é peça teatral para ser apresentada em um palco), pertence ao Gênero Narrativo Ficcional (narrativa em prosa, catársis indireta). Peço-lhes que leiam os trechos aqui postados sublinhando as palavras-chave. Por favor, peço aos meus leitores que repensem cada palavra, cada parágrafo, reclamo que repensem o texto em sua totalidade (e lembrem-se de que esta narrativa de altíssimo nível artístico foi escrito entre os anos trinta e quarenta do século XX, mas os problemas levantados por Mário de Andrade ainda hoje não foram totalmente resolvidos. De quem será a culpa? Do atual Governo Popular? Da minoria rica e privilegiada socialmente — “os donos da vida” — que não quer dividir o bolo em fatias iguais?).


CAFÉ - CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA

(Em três atos)


PRIMEIRO ATO – PRIMEIRA CENA

PORTO PARADO

Desde muito que os donos da vida andavam perturbando a marcha natural do comércio do café. Os resultados foram fatais. Os armazéns se entulharam de milhões de sacas de café indestinado. E foi um crime nojento. Mandaram queimar o café nos subúrbios escusos da cidade, nos mangues desertos. A exportação decresceu tanto que o porto quase parou. Os donos viviam no ter e se aguentavam bem com as sobras do dinheiro ajuntado, mas e os trabalhadores, e os operários, e os colonos? A fome batera na terra tão farta e boa. Os jornais aconselhavam paciência ao povo, anunciavam medidas a tomar. Futuramente. A inquietação era brava e nos peitos dos estivadores mais sabidos do porto parado, numa hesitação desgraçada, entre desânimos, a cólera surda esbravejava, se assanhavam os desejos de arrebentar.

A orquestra, de supetão, está agitadíssima, desagradável, quase tão irrespirável como o turbilhão que agita interiormente os estivadores. O pano se ergue rápido no armazém do porto. O armazém está sombrio, apenas no fundo a fresta da vasta porta de correr. As pilhas de sacas de café sobem até o teto no fundo, dos dois lados. Na frente, as sacas se amontoam mais desordenadas, às quatro, às três, outras sozinhas. Sobre elas, deitados, sentados, aos grupos, os estivadores quase imóveis esperam. Mais deixam raivar o turbilhão que têm do peito do que esperam, esperar o quê! A um lado, junto à ribalta, um grupo deles no chão quer matar o tempo no jogo do truco. A vestimenta de todos é a mesma, calças escuras largas, e as camisas de meia com listas vivamente coloridas, vermelho e branco, azul marinho e branco, amarelo e roxo, verde e encarnado. Esta calça de veludo cor de charuto denuncia um espanhol, assim como a boina que ele traz. Estes bigodes no estivador gordo, denunciarão o português. Tem a palheta de banda deste rapaz amulatado, e dois negros de cabeça ao vento, enormes, luzindo.

Na fresta da porta do fundo entra mais um estivador. Vem desanimado, lento, lerdo, se arrastando até o centro da cena. O jornal que tinham mandado ele buscar não trouxe notícia nenhuma, e ele o arrasta no chão, da mão pendida. Todos os estivadores se interessam pelo que dirá o recém-chegado, mas ele nem fala, coitado, faz um gesto só: amarfanha o jornal de parolagem e o atira com nojo no chão. E o desânimo agora abafa a todos, mais completo. Aqueles homens enormes, forças brutais, se sentem feito crianças na decisão a tomar. Como será possível que aquela terra deles, sempre tão altiva, tão generosa também, tenha perdido assim o seu porte de grandeza? O que fazer, agora que o café está baixo, sem valor. E manso, melancólico, sofrido o queixume daqueles homens fortes enche o bojo sombrio do armazém. E morre num abafamento implacável. Talvez fosse milhor morrer... E os estivadores se estiram por aí, na fraqueza vil da pasmaceira. Os jogadores voltam ao seu truco disfarçador. Fosse domingo, iriam ser sugados totalmente de suas forças morais, no futebol apaixonante, que isto, os generosos donos da vida não se esquecem de arranjar. E ainda um italiano e o rapaz da palheta se adormecem no jogo da morra. E parece que nada vai suceder.

Mas eis que duas mulheres de repente espiam pela fresta da porta. São eles sim, são os companheiros que elas andaram buscando pelos botequins do cais. Mas o portuga do boteco deu o basta do fiado e eles vieram ali. As mulheres, raivosas, correm a porta do armazém em toda a extensão. E agora se enxerga bem nítido o porto parado, a linha reta do cais vazio, o verde gasto do mar vazio, e um céu claro, branquiçado, sem nuvens, da mesma impassível desolação.

E o grupo agitado de umas vinte mulheres corre para o centro da cena. Estão quase delirantes, não podem mais, os filhos choram em casa pedindo pão, elas também estão famintas, e os maridos, os companheiros, o que fazem? Os seus vestidos femininos de fazendas lavradas, botam uma nota turbulenta e multicor no ambiente. “Eu quero o meu pão!” que elas gritam, quase desvairadas. Mas aqueles homens, amolentados ainda pela indecisão, num desalento cínico não têm mais esperança em nada. “Quem pode dar pão?”, eles murmuram, ecoando em cinza de eco, o grito vivo das mulheres.

Quem pode dar pão?... O café pode dar pão. Sempre dera o pão, a roupa e a paz relativa dos pobres. Mas agora aquele companheiro generoso de outros tempos, jaz ali, inútil, vazio de força, como o cais, como o porto: vazio. E as mulheres e os homens, numa alucinação, contemplam as pilhas mudas de sacas. Eles amam, sempre amaram aquele café paterno, que agora parece falhar. Mas ainda há-de estar nele a salvação de todos. As mulheres se aproximam das sacas, se abraçam com elas, contando os seus segredos de miséria, acarinham o grão pequenino que não falhará. E o grão pequenino lhes segreda o segredo que eles não se animavam a se revelar. Aquela fome que eles sentiam não era apenas uma fome de alimento, mas outra maior, a fome milenar dos subjugados, fome de outra justiça na terra, de outra igualdade de direitos para lutar e vencer.

E o pano desce lentamente, dando tempo a que o segredo que a cena revelou, se grave pra sempre no coração de todos os oprimidos.


(Amanhã postarei a Segunda Cena do Primeiro Ato — A COMPANHIA CAFEEIRA, S. A. — deste inquietante texto de Mário de Andrade)

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

8 - SOBRE O PAULISTANO RIO TIETÊ DE MÁRIO DE ANDRADE - 5

8 - SOBRE O PAULISTANO RIO TIETÊ DE MÁRIO DE ANDRADE - 5

NEUZA MACHADO

Hoje, vamos a ler o último trecho deste longo poema que nos foi legado por Mário de Andrade, quando nos anos quarenta (lembrem-se sempre das datas: anos de 1940) meditou sobre o triste “curso das águas” do Rio Tietê:


A MEDITAÇÃO SOBRE O TIETÊ

Mário de Andrade


São formas... Formas que fogem, formas
Indivisas, se atropelando, um tilintar de formas fugidias
Que mal se abrem, flor, se fecham, flor, flor, informes, inacessíveis,
Na noite. e tudo é noite. Rio, o que eu posso fazer!...
Rio, meu rio... mas porém há-de haver com certeza
Outra vida melhor do outro lado de lá
Da serra! E hei-de guardar silêncio!
O que eu posso fazer!... hei-de guardar silêncio
Deste amor mais perfeito do que os homens?...
Estou pequeno, inútil, bicho da terra, derrotado.
No entanto eu sou maior... Eu sinto uma grandeza infatigável!
Eu sou maior que os vermes e todos os animais.
E todos os vegetais. E os vulcões vivos e os oceanos,
Maior... Maior que a multidão do rio acorrentado,
Maior que a estrela, maior que os adjetivos,
Sou homem! vencedor das mortes, bem-nascido além dos dias,
Transfigurado além das profecias!
Eu recuso a paciência, o boi morreu, eu recuso a esperança,
Eu me acho tão cansado em meu furor.
As águas apenas murmuram hostis, água vil mas turrona paulista
Que sobe e se espraia, levando as auroras represadas
Para o peito dos sofrimentos dos homens.
... e tudo é noite. Sob o arco admirável
Da Ponte das Bandeiras, morta, dissoluta, fraca,
Uma lágrima apenas, uma lágrima,
Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê.

(30-XI-44 a 12-II-45)

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

7 - SOBRE O PAULISTANO RIO TIETÊ DE MÁRIO DE ANDRADE - 4

7 - SOBRE O PAULISTANO RIO TIETÊ DE MÁRIO DE ANDRADE - 4

NEUZA MACHADO

Vamos continuar a ler mais alguns trechos deste longo poema que nos foi legado por Mário de Andrade, quando nos anos quarenta (lembrem-se sempre das datas: anos de 1940) meditou sobre o triste “curso das águas” do Rio Tietê:



A MEDITAÇÃO SOBRE O TIETÊ

Mário de Andrade


Por que mais uma vez eu me aniquilo sem reserva,
E me estilhaço nas fagulhas eternamente esquecidas,
E me salvo no eternamente esquecido fogo de amor...
Eu estalo de amor e sou só amor arrebatado
Ao fogo irrefletido do amor.
... eu já amei sozinho comigo; eu já cultivei também
O amor do amor, Maria!
E a carne plena da amante, e o susto vário
Da amiga, e confidência do amigo... Eu já amei
Contigo, Irmão Pequeno, no exílio da preguiça elevada, escolhido
Pelas águas do túrbido rio do Amazonas, meu outro sinal.
E também, ôh também! Na mais impávida glória
Descobridora da minha inconstância e aventura,
Desque me fiz poeta e fui trezentos, eu amei
Todos os homens, odiei a guerra, salvei a paz!
E eu não sabia! Eu bailo de ignorâncias inventivas,
E a minha sabedoria vem das fontes que eu não sei!
Quem move meu braço? Quem beija por minha boca?
Quem sofre e se gasta pelo meu renascido coração?
Quem? Sinão o incêndio nascituro do amor?...
Eu me sinto grimpado no arco da Ponte das Bandeiras,
Bardo mestiço, e o meu verso vence a corda
Da caninana sagrada, e afina com os ventos dos ares, e enrouquece
Úmido nas espumas da água do meu rio,
E se espatifa nas dedilhações brutas do incorpóreo Amor.

Por que os donos da vida não me escutam
Eu só sei que não sei por mim! sabem por mim as fontes
Da água, e eu bailo de ignorâncias inventivas.
Meu baile é solto como a dor que range, meu
Baile é tão vário que possui mil sambas insonhados!
Eu converteria o humano crime num baile mais denso
Que estas ondas negras de água pesada e oliosa,
Porque os meus gestos e os meus ritmos nascem
Do incêndio puro do amor... Repetição. Primeira voz sabida, o Verbo.
Primeiro troco. Primeiro dinheiro vendido. Repetição logo ignorada.
Como é possível que o amor se mostre impotente assim
Ante o ouro pelo qual o sacrificam os homens,
Trocando a primavera que brinca na face das terras
Pelo outro tesouro que dorme no fundo baboso do rio!
É noite! é noite!... E tudo é noite! E os meus olhos são noite!
Eu não enxergo siquer as barracas na noite.
Só a enorme cidade. E a cidade me chama e pulveriza,
E me disfarça numa queixa flébil e comedida,
Onde irei encontrar a malícia do Boi Paciência
Redivivo. Flor. Meu suspiro ferido se agarra,
Não quer sair, enche o peito de ardência ardilosa,
Abre o olhar, e o meu olhar procura, flor, um tilintar
Nos ares, nas luzes longe, no peito das águas,
No reflexo baixo das nuvens.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

6 - SOBRE O PAULISTANO RIO TIETÊ DE MÁRIO DE ANDRADE - 3

6 - SOBRE O PAULISTANO RIO TIETÊ DE MÁRIO DE ANDRADE - 3

NEUZA MACHADO

Vamos continuar a ler mais alguns trechos deste longo poema que nos foi legado por Mário de Andrade, quando nos anos quarenta (lembrem-se sempre das datas: anos de 1940) meditou sobre o triste “curso das águas” do Rio Tietê:


A MEDITAÇÃO SOBRE O TIETÊ

Mário de Andrade


Vamos, Demagogia! eia! sus! Aceita o ventre e investe!
Berra de amor humano impenitente,
Cega, sem lágrimas, ignara, colérica investe!
Um dia hás de ter razão contra a ciência e a realidade,
E contra os fariseus e as lontras luzidias,
E contra os guarás e os elogiados. E contra todos os peixes.
E também os mariscos, as ostras e os trairões fartos de equilíbrio e
Pundhonor.
Pum d’honor.
Qué-de as Juvenilidades Auriverdes!
Eu tenho medo... Meu coração está pequeno, é tanta
Essa demagogia, é tamanha,
Que eu tenho medo de abraçar os inimigos,
Em busca apenas dum sabor,
Em busca dum olhar,
Um sabor, um olhar, uma certeza...

É noite... Rio! meu rio! meu Tietê!
É noite muito!... As formas... Eu busco em vão as formas
Que me ancorem num porto seguro na terra dos homens.
É noite e tudo é noite. O rio tristemente
Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa.
Água noturna, noite líquida... Augúrios mornos afogam
As altas torres do meu exausto coração.
Me sinto esvair no apagado murmulho das águas.
Meu pensamento quer pensar, flor, meu peito
Quereria sofrer, talvez (sem metáfora) uma dor irritada...
Mas tudo se desfaz num choro de agonia
Plácida. Não tem formas nessa noite, e o rio
Recolhe mais esta luz, vibra, reflete, se aclara, refulge,
E me larga desarmado nos transes da enorme cidade.

Si todos esses dinossauros impotentes de luxo e diamante,
Vorazes de genealogia e de arcanos,
Quisessem reconquistar o passado...
Eu me vejo sozinho, arrastando sem músculo
A cauda do pavão e mil olhos de séculos,
Sobretudo os vinte séculos de anticristianismo
Da por todos chamada Civilização Cristã...

Olhos que me intrigam, olhos que me denunciam,
Da cauda do pavão, tão pesada e ilusória.
Não posso continuar mais, não tenho, porque os homens
Não querem me ajudar no meu caminho.
Então a cauda se abriria orgulhosa e reflorescente
De luzes inimagináveis e certezas...
Eu não seria tão somente o peso deste meu desconsolo.
A lepra do meu castigo queimando nesta epiderme
Que encurta, me encerra e me inutiliza na noite,
Me revertendo minúsculo à advertência do meu rio.
Escuto o rio. assunto estes calabouços em que o rio
Murmura num banzeiro. E contemplo
Como apenas se movimenta escravizada a torrente,
E rola a multidão. Cada onda que abrolha
E se mistura no rolar fatigado é uma dor. E o surto
Mirim dum crime impune.

Vem de trás o estirão. É tão soluçante e tão longo,
E lá na curva do rio vêm outros estirões e mais outros,
E lá na frente são outros, todos soluçantes e presos
Por curvas que serão sempre apenas as curvas do rio.
Há de todos os assombros, de todas as purezas e martírios
Nesse rolo turvo das águas. Meu Deus! meu
Rio! como é possível a torpeza da enchente dos homens!
Quem pode compreender o escravo macho
E multimilenar que escorre e sofre, e mandado escorre
Entre injustiça e impiedade, estreitado
Nas margens e nas areias das praias sequiosas?
Elas bebem e bebem. Não se fartam, deixando com desespero
Que o resto do galé aquoso ultrapasse esse dia,
Pra ser represado e bebido pelas outras areias
Das praias adiante, que também dominam, aprisionam e mandam
A trágica sina do rolo das águas, e dirigem
O leito impassível da injustiça e da impiedade.
Ondas, a multidão, o rebanho, o rio, meu rio, um rio
Que sobe! Fervilha e sobe! E se adentra fatalizado, e em vez
De ir se alastrar arejado nas liberdades oceânicas,
Em vez se adentra pela terra escura e ávida dos homens,
Dando sangue e vida a beber. E a massa líquida
Da multidão onde tudo se esmigalha e se iguala,
Rola pesada e oliosa, e rola num rumor surdo,
E rola mansa, amansada imensa eterna, mas
No eterno imenso rígido canal da estulta dor.

Porque os homens não me escutam! Por que os governadores
Não me escutam? Por que não me escutam
Os plutocratas e todos os que são chefes e são fezes?
Todos os donos da vida?
Eu lhes daria o impossível e lhes daria o segredo,
Eu lhes dava tudo aquilo que fica pra cá do grito
Metálico dos números, e tudo
O que está além da insinuação cruenta da posse.
E si acaso eles protestassem, que não! que não desejam
A borboleta translúcida da humana vida, porque preferem
O retrato a ólio das inaugurações espontâneas,
Com béstias de operário e do oficial, imediatamente inferior,
E palminhas, e mais os sorrisos das máscaras e a profunda comoção,
Pois não! melhor que isso eu lhes dava uma felicidade deslumbrante
De que eu consegui me despojar porque tudo sacrifiquei.
Sejamos generosíssimos. E enquanto os chefes e as fezes
De mamadeira ficassem na creche de laca e lacinhos,
Ingênuos brincando de felicidade deslumbrante:
Nós nos iríamos de camisa aberta ao peito,
Descendo verdadeiros ao léu da corrente do rio,
Entrando na terra dos homens ao coro das quatro estações.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

5 - SOBRE O PAULISTANO RIO TIETÊ DE MÁRIO DE ANDRADE - 2

5 - SOBRE O PAULISTANO RIO TIETÊ DE MÁRIO DE ANDRADE - 2

NEUZA MACHADO

Sob a proteção dos versos de Mário de Andrade ― A MEDITAÇÃO SOBRE O TIETÊ ― e repensando o problema das intempéries tropicais que estão abalando muitas cidades do Brasil e do Mundo (neste início do ano de 2011), e comentando também a falta de cuidado das autoridades com o meio-ambiente, continuo reafirmando que o problema do descuido político é antigo (até agora, não mereceu a atenção dos políticos). Em São Paulo, por exemplo, a sujeira do Rio Tietê foi registrada em versos por Mário de Andrade.

Vamos continuar a ler mais alguns trechos deste longo poema que nos foi legado por Mário de Andrade, quando nos anos quarenta (lembrem-se sempre das datas: anos de 1940) meditou sobre o triste “curso das águas” do Rio Tietê:


A MEDITAÇÃO SOBRE O TIETÊ

Mário de Andrade


Meu rio, meu Tietê, onde me levas?
Sarcástico rio que contradizes o curso das águas
E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,
Onde me queres levar?...
Por que me proíbes assim praias e mar, por que
Me impedes a fama das tempestades do Atlântico
E os lindos versos que falam em partir e nunca mais voltar?
Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da terra,
Me induzindo com a tua insistência turrona paulista
Para as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!...

Já nada me amarga mais a recusa da vitória
Do indivíduo, e de me sentir feliz em mim.
Eu mesmo desisti dessa felicidade deslumbrante,
E fui por tuas águas levado,
A me reconciliar com a dor humana pertinaz,
E a me purificar no barro dos sofrimentos dos homens.
Eu que decido. E eu mesmo me reconstituí árduo na dor
Por minhas mãos, por minhas desvividas mãos, por
Estas minhas próprias mãos que me traem,
Me desgastaram e me dispersaram por todos os descaminhos,
Fazendo em mim uma trama onde a aranha insaciada
Se perdeu em cisco e polem, cadáveres e verdades e ilusões.

Mas porém rio, meu rio, de cujas águas eu nasci,
Eu não tenho direito mais de ser melancólico e frágil,
Nem de me estrelar nas volúpias inúteis da lágrima!
Eu me reverto às tuas águas espessas de infâmias,
Oliosas, eu, voluntariamente, sofregamente, sujado
De infâmias, egoísmos e traições. E as minhas vozes,
Perdidas do seu tenor, rosnam pesadas e oliosas,
Varando a terra a dentro no espanto dos mil futuros,
À espera angustiada do ponto. Não do meu ponto final!
Eu desisti! Mas do ponto entre as águas e a noite,
Daquele ponto leal à terrestre pergunta do homem,
De que o homem há de nascer.

Eu vejo, não é por mim, o meu verso tomando
As cordas oscilantes da serpente, rio.
Toda a graça, todo o prazer da vida se acabou.
Nas tuas águas eu contemplo o Boi Paciência
Se afogando, que o peito das águas tudo soverteu.
Contágios, tradições, brancuras e notícias,
Mudo, esquivo, dentro da noite, o peito das águas, fechado, mudo,
Mudo e vivo, no despeito estrídulo que me fustiga e devora.
Destino, predestinações... meu destino. Estas águas
Do meu Tietê são abjetas e barrentas,
Dão febre, dão a morte decerto, e dão garças e antíteses.
Nem as ondas das suas praias cantam, e no fundo
Das manhãs elas dão gargalhadas frenéticas,
Silvos de tocaias e lamurientos jacarés.
Isto não são as águas que se beba, conhecido, isto são
Águas do vício da terra. Os jabirus e os socós
Gargalham depois morrem. E as antas e os bandeirantes e os ingás,
Depois morrem. Sobra não. Nem siquer o Boi Paciência
Se muda não. Vai tudo ficar na mesma, mas vai!... e os corpos
Podres envenenam estas águas completas no bem e no mal.
Isto não são águas que se beba, conhecido! Estas águas
São malditas e dão morte, eu descobri! e é por isso
Que elas se afastam doos oceanos e induzem à terra dos homens,
Paspalhonas. Isto não são águas que se beba, eu descobri!
E o meu peito das águas se esborrifa, ventarrão vem, se encapela
Engruvinhado de dor que não se suporta mais.
Me sinto o pai Tietê! ôh força dos meus sovacos!
Cio de amor que me impede, que destrói e fecunda!
Nordeste de impaciente amor sem metáforas,
Que se horroriza e enraivece de sentir-se
Demagogicamente tão sozinho! Ôh força!
Incêndio de amor estrondante, enchente magnânima que me inunda,
Me alarma e me destroça, inerme por sentir-me
Demagogicamente tão só!

A culpa é tua, Pai Tietê? A culpa é tua
Si tuas águas estão podres de fel
E majestade falsa? A culpa é tua?
Onde estão os amigos? onde estão os inimigos?
Onde estão os pardais? e os teus estudiosos e sábios, e
Os iletrados?
Onde o teu povo? e as mulheres! dona Hircenuhdis Quiroga!
E os Prados e os crespos e os pratos e os barbas e os gatos e os línguas
Do Instituto Histórico e Geográfico, e os mu-
seus e a Cúria, e os senhores chantres reverendíssimos,
Celso niil estate varíolas gide memoriam,
Calípedes flogísticos e a Confraria Brasiliense e Clima
E os jornalistas e os trustkistas e a Light e as
Novas ruas abertas e a falta de habitações e
Os mercados?... e a tiradeira divina de Cristo!...
Tu és Demagogia. A própria vida abstrata tem vergonha
De ti em tua ambição fumarenta.
És demagogia em teu coração insubmisso.
És demagogia em teu desequilíbrio anticéptico
E antiuniversitário.
És demagogia. Pura demagogia.
Demagogia pura. Mesmo alimpada de metáforas.
Mesmo irrespirável de furor na fala reles:
Demagogia.
Tu és enquanto tudo é eternidade e malvasia:
Demagogia.

Tu és em meio à (crase) gente pia:
Demagogia.
És tu jocoso enquanto o ato gratuito se esvazia:
Demagogia.
És demagogia, ninguém chegue perto!
Nem Alberto, nem Adalberto nem Dagoberto
Esperto Ciumento Peripatético e Ceci
E Tancredo e Afrodísio e também Armida
E o próprio Pedro e também Alcebíades,
Ninguém te chegue perto, porque tenhamos o pudor,
O pudor do pudor, sejamos verticais e sutis, bem
Sutis!... E as tuas mãos se emaranham lerdas,
E o Pai Tietê se vai num suspiro educado e sereno,
Porque és demagogia e tudo é demagogia.

Olha os peixes demagogo incivil! Repete os carcomidos peixes!
São eles que empurram as águas e as fazem servir de alimento
As areias gordas da margem. Olha o peixe dourado sonoro,
Esse um é presidente, mantém faixa de crachá no peito,
Acirculado de tubarões que escondendo na fussa rotunda
O perrepismo dos dentes, se revesam na rota solene,
Languidamente presidenciais. Ei-vem o tubarão-martelo
E o lambari-spitfire. Ei-vem o boto-ministro.
Ei-vem o peixe-boi com as mil mamicas imprudentes,
Perturbado pelos golfinhos saltitantes e as tabaranas
Em zás-tras dos guapos Pêdêcês e Guaporés.
Eis o peixe-baleia entre os peixes muçuns lineares,
E os bagres do lodo oliva e bilhões de peixins japoneses;
Mas és asnático o peixe-baleia e vai logo encalhar na margem,
Pois quis engolir a própria margem, confundido pela facheada,
Peixes ao mil e mil, como se diz, brincabrincando
De dirigir a corrente, com ares de salva-vidas.
E lá vem por debaixo e por de-banda os interrogativos peixes
Internacionais, uns rubicundos sustentados de mosca,
E os espadartes a trote chique, esses são espardates! e as duas
Semanas Santas se insultam e odeiam, na lufa-lufa de ganhar
No bicho o corpo do Crucificado. Mas as águas,
As águas choram baixas num murmúrio lívido, e se difundem
Tecidas de peixes e abandono, na mais incompetente solidão.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

4 - SOBRE O PAULISTANO RIO TIETÊ DE MÁRIO DE ANDRADE - 1

4 - SOBRE O PAULISTANO RIO TIETÊ DE MÁRIO DE ANDRADE - 1

NEUZA MACHADO

Neste mês de janeiro, as chuvas tropicais chegaram com muita força aqui no Rio de Janeiro e em muitas outras localidades do Brasil, destruindo as paisagens, ceifando vidas, trazendo tristeza para muitas famílias, além da ameaça de terríveis epidemias.

Outro grande Estado brasileiro que está sofrendo com as chuvas de janeiro é São Paulo. A Capital do Estado ― a Cidade de São Paulo ― está em estado de calamidade, suas ruas estão alagadas, principalmente as ruas dos bairros mais pobres. O Rio Tietê é uma larga e longa vala de detritos, a sujeira contamina o rio, toda a podridão da Grande Cidade é carreada para o rio em esgotos mal-cheirosos.

A Cidade faz aniversário neste mês de Janeiro e o aniversário vai ser comemorado com muito brilho e muitos gastos pela população rica (aquela que não sofre os males das enchentes, pois esta parte da Cidade está sempre muito bem protegida). Os pobres não estão protegidos! Estão desabrigados e sem alimentos. Em São Paulo, os jornais maiorais e alguns políticos de lá (os de oposição ao Governo Federal) culpam a Natureza pelo desastre (os políticos da oposição de lá, que no momento comandam o Estado, não têm culpa alguma!). Em relação às enchentes do Estado do Rio de Janeiro, os mesmos jornais maiorais de lá e os principais jornais maiorais do Rio de Janeiro (também de oposição) culpam os políticos de cá e o anterior Governo Lula pelo cataclismo climático que ocorreu em muitas cidades fluminenses. Os políticos paulistas de oposição ao governo não têm culpa de nada, os políticos de cá, sim. É a eterna briga entre o Estado do Rio de Janeiro e São Paulo. Nesta disputa, para ver quem é o culpado, o Estado de Minas Gerais (dos políticos de oposição ao Governo Federal, no entanto, mineirinhos quietinhos) fica de fora. As enchentes de janeiro estão também arrasando muitas cidades de Minas Gerais...

Entretanto, o problema de São Paulo é antigo; é antigo o descaso das autoridades de lá e a sujeira do Rio Tietê também. Vamos ler alguns trechos de um longo poema que nos foi legado por Mário de Andrade, quando nos anos quarenta (lembrem-se sempre das datas: anos de 1940) meditou sobre o triste “curso das águas” do Rio Tietê:


A MEDITAÇÃO SOBRE O TIETÊ

Mário de Andrade


É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável
Da Ponte das Bandeiras o rio
Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa.
É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,
Soturnas sombras, enchem de noite tão vasta
O peito do rio, que é como si a noite fosse água,
Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões
As altas torres de meu coração exausto. De repente
O ólio das águas recolhe em cheio luzes trêmulas,
É um susto. E num momento o rio
Esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas,
Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam
Agora, arranha-céus valentes donde saltam
Os bichos blau e os punidores gatos verdes,
Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas,
Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada forma
Humana corrupta da vida que muge e se aplaude.
E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra.
Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo,
Está negro. As águas oliosas e pesadas se aplacam
Num gemido. Flor. Tristeza que timbra um caminho de morte.
É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado
É um rumor de germes insalubres pela noite insone e humana.

(Amanhã postarei mais um trecho deste importantíssimo poema de Mário de Andrade)